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Verdades inconvenientes

Com base em evidências científicas, o médico dinamarquês Peter Gøtzsche derruba paradigmas e revela ao mundo as fraudes cometidas pela indústria farmacêutica

Professor da Universidade de Copenhague e presidente do Nordic Cochrane Center, o dinamarquês Peter Gøtzsche é um dos mais influentes e controvertidos pesquisadores da área médica nos tempos atuais. Graduado em química, biologia e medicina, Gøtzsche possui grande experiência em testes clínicos e assuntos regulatórios. Em 1993, foi um dos fundadores da Cochrane, rede global que reúne mais de 30 mil profissionais de saúde com o propósito de contribuir para a tomada de decisões médicas com base em evidências científicas. Em mais de 70 artigos publicados nas cinco maiores revistas científicas do mundo – as chamadas “big five” – e quatro livros com traduções em diversas línguas, inclusive português, ele condena, por exemplo, o uso de medicamentos psiquiátricos por pacientes com depressão, algo rotineiro na medicina praticada hoje. E descreve a extensão das fraudes cometidas em todo o mundo pela indústria farmacêutica, segundo ele, uma das organizações criminosas mais poderosas que existe. Nesta entrevista, Gøtzsche explica os impactos dessa rede de mentiras e subornos para os sistemas de saúde e defende que os altos preços dos medicamentos estão relacionados muito mais à corrupção do que aos custos das pesquisas para seu desenvolvimento.

Foto: divulgação

Visão Saúde – Em dois livros, o senhor aborda a questão do crime organizado na área da saúde. Quão grave é esse problema?

PETER GØTZSCHE – A indústria farmacêutica chegou à conclusão de que crime compensa, e muito. Por isso, as práticas criminosas nessa indústria são mais frequentes e mais graves do que em outros setores da economia. E elas continuam crescendo nos últimos anos. Nos Esta- dos Unidos, as grandes farmacêuticas superam todas as outras indústrias em práticas criminosas. Essas empresas têm três vezes mais violações sérias ou moderadamente sérias do que outras companhias – mesmo levando-se em conta um ajuste no cálculo pelo tamanho das empresas. As grandes farmacêuticas norte-americanas também têm mais violações do que outras companhias daquele país em termos de corrupção e suborno transnacional e de negligência por fabricação insegura de medicamentos.

Por que a criminalidade se disseminou na indústria farmacêutica?

Esse comportamento decorre da teoria econômica e, portanto, é claro que as punições da sociedade por es- ses crimes não são suficientemente severas. Mesmo as multas de bilhões de dólares por práticas criminosas são vistas apenas como um custo de marketing pelas empresas. E essas multas constituem uma parcela pe- quena dos lucros obtidos pelos crimes. Os lucros nas empresas do ranking Fortune 500, nos Estados Unidos, são de cerca de 5%. Mas na indústria farmacêutica o lucro é de cerca de 20% – e aumentou de um nível an- terior de cerca de 10%. Isso ilustra como os preços dos medicamentos estão completamente fora de controle e não têm relação com o custos associados às pesquisas e à fabricação desses produtos. A indústria de medica- mentos é riquíssima, em parte, porque ela corrompe as pessoas. Há dinheiro dessa indústria em todos os lugares. Até ministros de saúde, em alguns países, fo- ram corrompidos.

Como isso ocorre, na prática?

O suborno é rotineiro e envolve grandes quantidades de dinheiro. Quase todo tipo de pessoa que pode afetar os interesses da indústria farmacêutica foi subornada: médicos, administradores de hospitais, ministros, ins- petores de saúde, funcionários aduaneiros, assessores fiscais, funcionários de registro de medicamentos, ins- petores de fábrica e partidos políticos. Comparada com outras indústrias, a indústria farmacêutica é o maior fraudador do governo federal dos EUA, sob os termos da False Claims Act.

Médicos também estão envolvidos diretamente nesse esquema?

A corrupção de médicos é comum mesmo em países como a Dinamarca, considerado um dos países menos corruptos do mundo. Milhares de médicos estão na folha de pagamento da indústria farmacêutica. Isso é impor- tante para as empresas, já que muitos dos crimes cometidos pelo setor de medicamentos não seriam possíveis se os médicos não contribuíssem para que ocorressem.

Quais os principais impactos dessa rede criminosa?

O impacto de tudo isso é muito grave. O crime cor- porativo envolve enormes roubos de dinheiro dos contribuintes. Medicamentos prescritos são a terceira principal causa de morte no mundo, após as doenças do coração e o câncer. Isso foi documentado em vários estudos independentes, e a tragédia maior é que muitas das pessoas que morreram não precisavam dos remé- dios que as mataram. Anti-inflamatórios não esteroides e medicamentos psiquiátricos são exemplos disso. Ou- tro impacto importante, que afeta os sistemas de assis- tência à saúde, é que não podemos mais pagar os altos preços dos medicamentos e, portanto, devemos buscar um modelo radicalmente diferente.

Que modelo poderia ser esse?

No ano passado, eu participei de reuniões organizadas pela presidência holandesa da União Europeia, na qual um grupo internacional de cerca de 30 pessoas foi convi- dado a ser criativo e encontrar soluções para lidar com os preços demasiados dos medicamentos. Formamos qua- tro grupos e, no meu grupo, concordamos em sugerir a abolição de patentes na assistência à saúde e em tornar públicas as atividades de pesquisa, desenvolvimento e vendas de medicamentos. Isso criaria um sistema muito melhor, no qual poderíamos colocar um preço razoável nos medicamentos, que permitisse o acesso até mesmo em países do terceiro mundo. A maior parte dos avanços em medicamentos, de todo o modo, provém de labora- tórios financiados por governos. Então, poderíamos assu- mir parte do processo para o benefício público e contra- tar empresas farmacêuticas para trabalharem para nós, competindo para produzir tão barato quanto possível, em forte contraste com o sistema atual. As empresas far- macêuticas são atualmente nossos mestres; precisamos torná-las nossos servos.

Enquanto não temos um novo modelo, qual é a melhor maneira de combater a corrupção que afeta os sistemas de saúde?

Não existe uma boa maneira de combater as práticas criminosas atuais nas indústrias de medicamentos e dispositivos médicos, mas uma opção pode ser colocar os CEOs dessas companhias atrás das grades, com longas penas de prisão. Esse princípio funcionou bem para a máfia e também poderia funcionar para o setor farmacêutico. As pessoas nos níveis superiores da indús- tria de medicamentos, assim como as pessoas nos níveis superiores da máfia, não podem se defender dizendo que não sabiam nada sobre o que acontece mais abaixo. Claro que elas sabem.

A maior parte dos avanços em medicamentos, de todo o modo, provém de laboratórios financiados por governos. Então, poderíamos assumir parte do processo para o benefício público”

Nesse cenário, a medicina baseada em evidência perdeu importância?

Uma vez que a maioria dos testes de medicamentos são planejados, conduzidos e analisados pela própria indús- tria farmacêutica, não podemos confiar integralmente no que é publicado nas revistas médicas, nem mesmo nas melhores. É uma séria ameaça à medicina baseada em evidências o fato de não podermos confiar no que é publicado. É por essa razão que nós, no Nordic Cochra- ne Center, trabalhamos para obter acesso aos volumosos relatórios de estudos clínicos na Agência Europeia de Medicamentos [nota da redação: a Agência Europeia de Medicamentos é o orgão da União Europeia para a proteção e a promoção da saúde pública e animal por meio da avaliação e supervisão dos medicamentos para uso humano e veterinário]. Recentemente, também de- monstramos que a terapia comportamental cognitiva pode diminuir pela metade o risco de uma nova ten- tativa de suicídio em pessoas que foram admitidas em um atendimento de emergência após tentarem se matar. Esse é um efeito muito relevante e indica que pessoas com depressão não devem receber pílulas – que não têm um efeito significativo sobre a depressão, de qualquer maneira – mas, sim, passar por psicoterapia.

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