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Tiro no pé

Raul Cutait, cirurgião e professor universitário, aponta os riscos do número excessivo de formandos em medicina e os possíveis caminhos para a melhoria do ensino

“Não podemos conviver com a ideia de termos um milhão de médicos no Brasil”, diz o renomado cirurgião do Hospital Sírio Libanês e professor da Universidade de São Paulo (USP) Raul Cutait. Com a experiência de quem já foi gestor público e há mais de quatro décadas trabalha como médico e docente, Cutait aponta que o número excessivo de formandos de medicina em faculdades de baixo nível é um risco para a saúde da população. E, na qualidade de integrante da comissão formada pelo Ministério da Educação (MEC) para avaliar o ensino de medicina no Brasil, o cirurgião defende a implantação de um programa de acreditação das faculdades e de um exame nacional de proficiência obrigatório para todos os médicos. Acompanhe, na entrevista exclusiva à Visão Saúde, esses e outros destaques.

FOTO: PC PEREIRA

VISÃO SAÚDE – O Brasil precisa de mais médicos ou de melhores médicos?

RAUL CUTAIT – O Brasil precisa de bons médicos. O problema de ter gente mal preparada sendo colocada no mercado de trabalho é algo que eu chamo de tiro no pé. Não adianta ter médicos que não saibam resolver proble- mas. A faculdade de medicina por si só não consegue pre- parar alguém para o mercado de trabalho, é necessário que a formação seja complementada com uma residên- cia médica. E hoje já não há residência para mais que 60% dos que se formam. Quando essas 130 faculdades de medicina novas estiverem funcionando – veja, nós pas- samos, em cinco anos, de 200 faculdades, que já era um absurdo, para 330 – nós vamos ter em breve 1 milhão de médicos no mercado de trabalho. Quando toda essa nova turma estiver saindo da faculdade, vão faltar muito mais vagas para residência. Ou seja, vai ter gente entrando no mercado de trabalho apenas com a formação do curso médico, que todos reconhecem ser insuficiente. Isso é um alto risco. A população será atendida por profissionais incapacitados e que não vão saber resolver uma boa parte dos problemas.

O senhor é a favor da suspensão da abertura de novas faculdades de medicina?

O governo criou uma moratória de cinco anos pra se exa- minar esse problema. Não pense que é muito tempo. O Japão teve 30 anos de moratória. Nos EUA, há 100 anos, eles fecharam diversas faculdades. O Programa Mais Mé- dicos colocou o sarrafo no terceiro subsolo, ficou muito fácil abrir uma faculdade. Veja, eu não sou contra abrir fa- culdades de medicina, eu sou muito contra abrir faculda- des que não têm condições de formar bons médicos. E por que elas não têm? Simples: primeiro porque não existem professores em número suficiente pra todas elas. Esses são indivíduos que não só têm apenas de ensinar as técnicas e desenvolver habilidades nos alunos, mas também ajudar os alunos a formarem sua personalidade como médicos. Questões do dia a dia, como ética, relacionamento. Os professores têm de ser verdadeiros mentores. Mas essas escolas não vão ter essas pessoas lá, então os alunos não terão pra quem olhar. Os estudantes não terão nem o aprendizado necessário nem os exemplos. Isso, por si só, é dramático. Então, essas faculdades de medicina novas po- dem ser vistas como bons negócios. Mas não como uma coisa boa para nossa saúde.

Por que faculdades públicas entre as melhores de medicina?

Porque tradicionalmente os melhores professores acabaram ficando em faculdades públicas. Não adianta ter um cara es- petacular na escola privada. Você precisa de densidade, de um timaço na docência. E tem de ter um hospital escola também espetacular. Quantas faculdades privadas têm isso? Acho que esses são os principais entraves.

Quais são as condições mínimas para uma faculdade de medicina ser boa?

Na medicina o estudante precisa aprender a conviver com os pacientes, com os casos clínicos. Nós não temos hospi- tais escola pra toda essa gente que está sendo colocada no mercado. A ideia de fazer hospitais do SUS serem hospi- tais de ensino é leviana. Ali estão médicos atendendo, não são professores. Os professores precisam ser capacitados para isso. Outra coisa são as instalações das faculdades. Não se pode ter uma escola de medicina sem laboratórios e uma série de outras coisas porque o estudante não terá o ensino apropriado. Esse conjunto hoje é absurdamen- te complexo, difícil de ser criado. E caro. Na USP somos privilegiados, temos tudo em grandes volumes, então as pessoas aprendem. Por outro lado, a Escola Paulista de Medicina, que é de grande padrão, hoje vive a situação de penúria do seu hospital de treinamento dos alunos residentes. Já está sofrendo. No Rio de Janeiro, também há grandes escolas que passam pelo mesmo problema de financiamento insuficiente. Dentro disso, tem um dado estarrecedor: no exame do Cremesp [Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo] para avaliar os co- nhecimentos e proficiência dos alunos, cerca de 40% não passam. Isso quer dizer que existe uma grande parcela de gente se formando, no estado mais rico do país, que não aprendeu o mínimo necessário para ser um bom médico.

Quais são os reflexos disso no sistema de saúde?

A maioria das coisas que tem de ser tratadas são mais sim- ples, que a assistência básica de saúde resolve. Então aí não precisa de um médico extremamente bem capacitado, mas precisa ser bem formado. Já nos níveis de atenção secundá- ria e terciária, é necessário ter gente muito bem formada. O indivíduo que não sabe operar, indicar bem, pode fazer com que aconteça algo errado com seu paciente. O erro pode ser por imperícia, negligência ou incompetência. Só que o coitado não aprendeu a resolver o problema direito.

Então, será que ele e a instituição em que ele trabalha de- vem ser punidos? Ou será que o governo também deve ser penalizado, pois permitiu que ele se formasse? Outra coi- sa fundamental é o médico conversar com as pessoas. Isso foi asfixiado, tanto no sistema público quanto no privado. Quando conversamos com o paciente entendemos melhor o que está passando com ele e, às vezes também descobri- mos outros problemas de saúde que ele nem sabia. Muitas vezes, quando a pessoa chega num consultório médico, ela está precisando de algo mais.

Esse atendimento mais “humanizado” é ensinado nas faculdades brasileiras?

Não, não existem cadeiras que se envolvem com essas ques- tões. Elas ensinam a fazer o diagnóstico de câncer, mas não ensinam a como contar para o paciente que ele tem câncer. Tem indivíduos que pontualmente fazem isso, mas a própria USP não tem isso de forma mais profunda. Existem técnicas pra isso, não é só conversar e estimular sensibilidade no es- tudante. Eu procuro passar isso para os meus alunos dando exemplo, mostrando como eu faço. E quando eu pergunto para eles do que eles mais gostam nas minhas aulas, quase a totalidade me diz que gostou de observar minha maneira de lidar com os pacientes internados. Ter bons mentores ajudou muito na minha formação como médico.

E como o senhor avalia o ensino da ética profissional?

Ética aprendemos desde nossa casa. E na faculdade é fun- damental que se ensine a ética da nossa profissão, que é completamente diferente da do advogado, do comerciante. Isso se aprende com aulas, mas muito mais pelo exemplo. Como os alunos sem mentores vão aprender comporta- mento ético? Meu pai era médico e me deu um conselho que eu sigo: primeiro o paciente. Tem situações em que eu posso me dar mal, e eu opto sempre por proteger primeiro o paciente. Isso aconteceu muitas vezes. Minha obrigação é com a pessoa, eu não tenho de proteger nem a mim, nem aos meus colegas. Só se isso redundar no bem do meu pa- ciente. Ética é palavra chave.

O grande desperdício existente no sistema de saúde também é reflexo de uma formação deficiente?

Todo o mundo quer usar o melhor produto, o mais novo. Existem tecnologias incorporadas que são caras, mas fazem a diferença e permitem economias de custos diretos e in- diretos. Por outro lado, tem tecnologias que podem ser dis-

pensadas. Eu sempre procuro ensinar para os meus alunos a fazer as coisas da maneira mais barata, se o resultado for o mesmo de uma coisa mais cara. Entre usar um gram- peador e uma sutura a mão, eu falo pra fazer a segunda, porque ao invés de gastar 1.600 reais, você vai gastar 60 reais. E essa noção não é muito transmitida na faculdade hoje. Os estudantes precisam ser ensinados a questionar se precisa mesmo daquele produto que custa uma fortuna se o resultado é o mesmo de outro. O médico tem de agir de acordo com protocolos clínicos e, se quiser fazer diferente, tem de justificar. Isso obriga ele a ter uma formação médica adicional. Os estudantes de medicina deveriam aprender um pouco de tudo: sociologia, pedagogia, administração. Isso é uma falha dos nossos programas de ensino em geral, até nas melhores faculdades.

Como estão os trabalhos da comissão do MEC que examina as faculdades de medicina?

Já fizemos um diagnóstico dos problemas do ensino de me- dicina no Brasil e colocamos alguns pontos importantes que precisam acontecer para melhorar o nível. Um deles é um pro- grama de acreditação, que estabeleça requisitos mínimos que tenham de ser seguidos. O MEC tem de ter um mecanismo pra punir, até com o fechamento, as faculdades que não se- guirem as recomendações. Outra proposta é estabelecer um exame nacional de proficiência dos alunos, como o feito pela OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], que todos os médicos precisem fazer. Todos os brasileiros estudando em outros paí- ses, como Bolívia, Paraguai e Argentina teriam de passar nesse teste pra obter a licença para exercer a medicina. Agora vai depender muito dos novos ministros da educação e da saúde. Acho que existe espaço para a coisa acontecer.

O currículo deve ser reformulado?

Temos de definir o que cada escola tem de ensinar para for- mar um bom médico. E também saber o que será aceito de va- riação em torno de um currículo mínimo. Não se pode querer que todas as faculdades formem os mesmos tipos de médicos. Uma faculdade no interior do estado pode formar um médico para as necessidades locais, e não um médico como o que a USP vai formar. Nos EUA, por exemplo, existem programas universitários em que o aluno faz graduação e doutorado ao mesmo tempo, porque a proposta é formar médicos que sejam pesquisadores. Então, é simples: temos de definir que tipo de médico vai ser formado, e ver se a faculdade está dentro do padrão mínimo a ser exigido.

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