Presidente da Abramge vê rol “taxativo” ainda sob risco e explica por que um rol “exemplificativo” representaria o colapso dos planos de saúde
Em 8 de junho deste ano, os olhos de todos envolvidos no sistema de saúde suplementar, e também dos demais brasileiros atentos a essa questão fundamental para o país, estavam voltados à Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Nove ministros do chamado “Tribunal da Cidadania” estavam reunidos para concluir o julgamento sobre a “taxatividade” ou não do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). Traduzindo para os leigos, a corte decidiu que a lista de coberturas obrigatórias para os planos de saúde, que possui mais de 3 mil itens que atendem a todas as doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), da OMS (Organização Mundial da Saúde), continua válida, com algumas exceções. Caso fosse considerada “exemplificativa”, na prática, deixaria de ter sentido. E mudaria toda a estrutura dos planos de saúde, comprometendo a manutenção dos serviços que atendem, atualmente, a quase 50 milhões de pessoas. Na entrevista a seguir, o presidente da Abramge – Associação Brasileira de Planos de Saúde, Renato Casarotti, explica a importância dessa decisão e alerta que ainda há iniciativas que colocam sob risco o futuro dos planos de saúde.
VISÃO SAÚDE – Qual é o balanço da Abramge sobre a recente decisão do STJ acerca do rol da ANS?
RENATO CASAROTTI – Nós esperávamos que a decisão viesse no sentido de considerar o rol como taxativo. É importante, primeiro, falar sobre os conceitos de “rol taxativo” e “rol exemplificativo”, discussão que ficou difusa por ser um lin- guajar setorial que as pessoas não entendem integralmente. Na essência, trata-se de existir ou não uma lista obrigatória de coberturas dos planos de saúde ou de ter de cobrir toda e qualquer coisa que seja prescrita por um médico. “Taxa- tivo” significa ter uma lista e exemplificativo, na verdade, é não ter uma lista e seguir o que o médico prescreve. Essa lista, o rol, existe desde 1998, é fundamental e por isso esse reconhecimento do STJ foi muito importante.
Por que o rol é fundamental para os planos de saúde?
Porque sem ele não temos serviços, não temos produtos. Se não sabemos o que temos de cobrir, não temos como precifi- car o serviço que entregamos. Esse, para nós, foi o principal ponto. Lembrando que a lista não tem só os procedimentos, terapias e eventos a serem cobertos, mas também em quais situações devem ter cobertura. Por exemplo, existe previsão e regras de cobertura de laparoscopia ou de cirurgia robótica para determinados procedimentos. Se essas regras deixam de existir, o cirurgião pode pedir cirurgia robótica para qual- quer coisa. E não temos nem como questionar isso. Então, na nossa avaliação, a decisão do STJ é correta. Há exceções, mas são exceções muito claras, em determinadas situações: quando [o procedimento ou terapia] ainda não tiver sido avaliado pela agência, quando não houver incorporação por outras agências internacionais. A discussão deveria ser muito mais em ter ou não ter uma lista, em como ela é atualizada, com que frequência e com quais critérios. Essa discussão é um pilar fundamental para qualquer sistema de saúde, in- clusive os públicos. No sistema público quem faz esse papel é a Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecno- logias], que decide o que vai ser incorporado ou não para o SUS [Sistema Único de Saúde].
O que aconteceria se o rol deixasse de existir?
Se tirar esse horizonte do sistema, a tendência de se errar, para os dois extremos, é muito grande. Pode haver a sub- precificação dos planos, para tentar manter a acessibilidade, mas se segurar o preço vai estourar do outro lado. Quando chegar a conta dos procedimentos, a conta não vai fechar.
Ou, no outro extremo, as empresas podem tentar precificar esse risco muito mais elevado, levando a uma restrição de acesso aos planos. Poucas pessoas vão conseguir pagar o pre- ço. Então, hoje, a discussão que traz mais apreensão para o setor é essa. É a mais estruturante, está na raiz do sistema e é a questão que traz mais risco de médio e longo prazo para o setor.
A decisão do STJ firma um caminho do qual não vamos sair por ora?
Não, ela está em risco. Hoje existe um debate em dois fó- runs diferentes. Houve recursos [à decisão do STJ] e novas ações para o STF. Mas, nesse fórum, a tendência é que seja um debate técnico, aprofundado, que favorece uma decisão equilibrada. Quanto mais técnica for a decisão, melhor. Mas, por outro lado, o segundo fórum de discussão é o Congresso Nacional, que está muito mais suscetível a pressões sociais. Estamos em ano de eleições, alguns par- lamentares serão candidatos, então existe pouca abertura para se discutir o tema com profundidade. Uma legislação aprovada a toque de caixa é um perigo, que pode interferir na estrutura do sistema. Por exemplo, há iniciativas que preveem um rol, mas que abrem exceção para tudo o que for prescrito pelo médico. Então é algo como “isto pode, mas tudo pode ser exceção”. Estamos muito preocupados com essa discussão, que pode ou não garantir a sobrevi- vência do sistema de saúde suplementar. Temos de mostrar para a sociedade o risco desse tipo de mudança.
Muitas vezes a discussão sobre cobertura é focada em casos individuais. Qual é a importância de se ancorar no princípio do mutualismo? Isso é fundamental. Temos de mostrar que o sistema não vai conseguir entregar tudo para todos. Isso é impossível, fi- nanceiramente, enquanto coletividade. Temos necessaria- mente de fazer escolhas sobre o que vai ser coberto. E essas escolhas passam por três critérios essenciais. Primeiro, se [o procedimento ou terapia] é eficaz, isto é, se funciona ou não. O médico, individualmente, não pode definir se algo funciona ou não. O segundo critério é de segurança, se funciona e se não faz mais mal do que traz benefícios. E o terceiro critério é a custo-efetividade, um conceito funda- mental para a coletividade, porque trata-se do custo-bene- fício de se incorporar algo ao rol. Se o custo é muito maior do que o benefício que ele entrega, não deveria se incorporar. Porque vai ocupar espaço de outras terapias e outros procedimentos que precisariam ser incorporados. Então tem de haver prioridades. É como em um condomínio que faz escolhas de quais despesas serão rateadas. O que faz mais sentido, colocar câmeras de segurança ou aque- cimento na piscina? São escolhas tomadas com base no custo-benefício. Se você acaba com o processo de incor- poração, quem tem acesso a advogados, por exemplo, é que vai poder se beneficiar. Então, a incorporação tem de olhar sempre para a coletividade, não para o individual. Temos de buscar formas didáticas, mais claras, de as pes- soas entenderem. Os planos de saúde são como enormes condomínios, em que as pessoas rateiam as despesas.
Nossa expectativa é que a discussão ocorra cada vez menos no judiciário e cada vez mais na ANS. Que seja uma discussão técnica. Ao invés de se discutir casos individuais, se cobre ou não, que se discuta a incorporação, sob a ótica da coletividade. Esse processo já melhorou bastante, mas ainda há espaço para maior participação social.
Voltando à decisão do STJ, que por ora deu segurança ao sistema com o rol taxativo, qual o reflexo disso na judicialização excessiva na saúde suplementar?
A perspectiva é positiva, de um pouco de pacificação. As exceções são claras. Nossa expectativa é que a discussão ocorra cada vez menos no judiciário e cada vez mais na ANS. Que seja uma discussão técnica. Ao invés de se dis- cutir casos individuais, se cobre ou não, que se discuta a incorporação, sob a ótica da coletividade. Esse processo já melhorou bastante, mas ainda há espaço para maior participação social. Temos de discutir, tecnicamente, se- gundo os critérios mencionados, se determinado procedi- mento deverá ter cobertura ou não. E não apenas para a pessoa que entrou no judiciário, mas todos que estão no sistema.
Como o senhor descreveria a situação financeira dos planos de saúde, atualmente?
Viemos de um ano muito difícil. O setor teve um 2020 com resultados financeiros positivos, isso é verdade. Com queda de sinistro e com aumento do número de beneficiários. Mas 2021, por sua vez, foi um ano muito difí- cil. Por duas razões: primeiro que, por causa de 2020, no ano passado os planos individuais, pela primeira vez na história, tiveram uma redução de preço pago pelas pes- soas. Isso é inédito em qualquer setor regulado. E mesmo para os planos coletivos, em que o preço não é regulado, o reajuste médio foi de 5% e para algumas empresas foi próximo de zero. Por outro lado, em 2021, as despesas dispararam, primeiro por causa da Covid, que teve a pior onda no primeiro trimestre do ano. Não tinha vaga nos hospitais e houve a retomada, principalmente no segun- do semestre, de todos os procedimentos e eventos que estavam represados pela Covid. O que nos levou a uma situação de prejuízo operacional global, do setor, de 980 milhões de reais. Isso penalizou, de forma indistinta, pe- quenas, médias e grandes operadoras.
Considerando esse cenário, o que aconteceria se o rol exemplificativo fosse adotado?
Se adotarmos o rol exemplificativo é difícil até estimar o impacto. Isso levaria a um colapso do sistema em dois ou três anos. Porque teria uma disparada das despesas médicas, por causa do volume muito maior de procedi- mentos caros, como cirurgias robóticas, além da adoção cada vez maior de opções mais caras em detrimento de outras mais baratas mas tão efetivas quanto. Por exemplo, ressonância magnética. Foi o que eu falei anteriormente, em relação a previsão de que em quais casos tal procedi- mento estaria coberto. São as diretrizes de utilização. A lista traz quais procedimentos serão cobertos e em quais situações, que são as diretrizes de utilização. Isso é tão importante quanto a lista em si. Se isso é descartado, per- de-se o controle, a tendência é ter uma alta muito grande. A consequência direta dessa alta é que, no ano seguinte, isso vai pressionar o reajuste, que pode ser o dobro do que se tem hoje. É uma bola de neve. Do outro lado, é pro- vável que tenhamos uma pressão social muito forte para o controle artificial dos preços. É a tempestade perfeita, que levaria à redução de oferta de planos e à quebra da sustentabilidade dos planos já existentes. Como a escala do setor é muito grande, um prejuízo pequeno em termos percentuais é, em valores absolutos, muito grande. Isso quebra o setor muito rapidamente. Mesmo com as reser- vas [financeiras], as operadoras não conseguiriam convi- ver com prejuízos recorrentes, por causa da escala. Um índice negativo tem um impacto muito grande e muito rápido. Então, com prejuízos de seis meses seguidos, por exemplo, a chance de colapso é grande.
Algumas pessoas veem os balanços de operadoras e afirmam que os resultados financeiros são bons.
Há uma confusão entre resultado financeiro e resultado operacional. O resultado de uma aplicação financeira é uma coisa, mas o que está relacionado à sustentabilidade de qualquer empresa é o resultado operacional. Qual é a lógica de o resultado financeiro ser muito melhor que o operacional? Imagine que uma pessoa pegue uma parte de seu salário e destine para uma aplicação financeira. Só que isso não influi se o salário é adequado ou não. No caso de operadoras, o que se paga de despesas assis- tenciais, mais as despesas operacionais, mais os impostos, versus o que se recebe de contraprestação, é necessário ter resultado positivo. Mesmo que seja uma margem pe- quena de lucro, ela tem de existir. Se for negativo, muito rapidamente o sistema entra em colapso. Se a operação não para em pé, o negócio não faz sentido. Então, nesse cenário de rol exemplificativo, as despesas estariam tão pressionadas que a operadora vai ter de repassar isso para o preço. Aí muitas pessoas não vão conseguir pagar o pla- no. E tem a possibilidade muito forte de não ser permitido o repasse adequado, via controle de preços. Se esses dois vetores se combinarem, o colapso se materializa muito mais rapidamente. Em dois, três anos o sistema implode.
Se a saúde suplementar se inviabilizar, o que ocorreria com o sistema de saúde brasileiro como um todo?
Naturalmente as pessoas migrariam para o SUS, que já enfrenta seus desafios, já está estrangulado. O mesmo problema demográfico que temos na saúde suplementar [envelhecimento da população, aumentando a demanda por serviços assistenciais] também está presente no siste- ma público. Além disso o SUS teria de acolher esse con- tingente adicional de pessoas em um prazo muito curto. E a tendência é de se precarizar o cuidado no SUS, já que não há abundância de recursos.
Qual sua avaliação do mecanismo atual de incorporação de novos procedimentos e terapias, em relação à celeridade do processo e também da observação do critério de custo-efetividade? O que funciona e o que precisa melhorar?
Houve uma mudança neste ano. A atualização era bienal, o que gerava muita pressão social. Na pandemia, o pro- cesso passou para mais de três anos. Em 2021, após deba- te amplo no Congresso Nacional, adotou-se um processo contínuo de atualização. A qualquer momento pode-se pedir a incorporação de um novo procedimento, medi- camento ou terapia. Os prazos foram muito encurtados e, além disso, são prazos para cada avaliação e não mais para o conjunto do rol. Eles vão de 120 dias, que podem ser estendidos para mais 60 no caso de antineoplásicos orais, que têm uma regra específica. Ou 180 dias que po- dem ser estendidos para mais 90 dias para outras terapias. O prazo de 180 dias está em linha com as melhores práti- cas no mundo todo, em países como Inglaterra, Austrália e Canadá. E o prazo limite de análise de 120 dias para an- tineoplásicos orais é o menor do mundo. Esses prazos não são fáceis de serem cumpridos, mas sabemos que a ANS está se esforçando para isso. Lembrando que são prazos máximos. Em 2022, até 5 de julho, 24 novas terapias fo- ram incorporadas. Isto é, as análises ocorreram em tempo mais curto que o prazo limite. Está muito célere.
“Nossadiscussãonãoéparaincorporarmenos,massimparaincorporarmelhor.Écomovocêfarianasuacasa,quer colocar mais coisa na geladeira, mas se pagar 200 reais por uma caixa de ovos, a geladeira vai ficar vazia.”
E o que ainda deve ser melhorado, na sua opinião?
É importante ter um limiar de custo-efetividade, isto é, uma linha de corte aceitável. A OMS recomenda que essa linha de corte seja de 1 pib per capita por quali. QALY é um índice que determina anos a mais de expectativa de vida como resultado de uma determinada terapia. Um QALY representa mais um ano de expectativa de vida. Esse limite proposto pela OMS é para adequar a capa- cidade econômica de um determinado país com o que você recebe de benefício. Isso é um critério bom e, inde- pendentemente de qual for a linha do corte, é importante que ela existe, pois torna a análise mais objetiva. Ficou acima, não entra. Se ficou fora, o fabricante é estimulado a baixar o preço para que seu produto seja incorporado. E se isso não ocorrer, simplesmente será uma incorporação que não vale a pena sob a ótica de custo-efetividade. Por sinal, a Conitec, que é o órgão responsável por conduzir o processo de incorporação no SUS, está com uma con- sulta pública aberta para justamente discutir um limiar de custo-efetividade. Outra coisa importante que pode ser aprimorada no processo da ANS é o que se chama de preço de incorporação, isto é, um valor menor que o preço CMED [estipulado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos como limite], que viabilize sua incorporação pelo sistema, assim como faz a Conitec. Nossa discussão não é para incorporar menos, mas sim para incorporar melhor. É como você faria na sua casa, quer colocar mais coisa na geladeira, mas se pagar 200 reais por uma caixa de ovos, a geladeira vai ficar vazia.
Toda a discussão em torno do rol deveria girar em torno do princípio da previsibilidade, concorda?
Enquanto setor, a maior preocupação, mais do que com a qualidade das regras, é com a instabilidade das regras. Elas mudam com uma velocidade estonteante, e sem debate. Para quem tem de operar no sistema, isso é insalubre. As mudanças constantes são uma das principais causas da redução considerável do número de empresas na saúde suple- mentar. Muitas operadoras “quebraram” nos últimos anos. Atualmente, essa instabilidade está muito menos na ANS do que no Legislativo e, em certa medida também, no Ju- diciário. As operadoras fazem seu planejamento de acordo com regras, que depois podem mudar completamente. Um exemplo é o controle artificial de preços, que recentemente foi aventado e é uma possibilidade que causa muito temor. A única certeza que temos agora é que o cenário futuro é totalmente imprevisível.