Em entrevista exclusiva à Visão Saúde, Marcos Lisboa, especialista em políticas públicas e presidente do Insper, alerta sobre o uso ineficiente dos recursos na saúde
Marcos Lisboa tem uma trajetória que abrange experiências em instituições acadêmicas, no governo e como executivo de instituições financeiras. Já exerceu a função de diretor-executivo do Itaú Unibanco, foi presidente do Instituto de Resseguros do Brasil e, de 2003 a 2005, atuou como secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Economista de formação, com Ph.D. pela Universidade da Pensilvânia, Lisboa também tem longa experiência na área acadêmica, coordenando pesquisas sobre políticas públicas e saúde. Nesta entrevista, o atual presidente do Insper — instituição de ensino superior e de pesquisa sem fins lucrativos — fala sobre o desafio de se coordenar o sistema de saúde brasileiro para que os benefícios para a coletividade se sobreponham a interesses individuais.
VISÃO SAÚDE – Qual sua avaliação sobre o atual momento da saúde no Brasil e suas perspectivas?
MARCOS LISBOA – Em geral, política pública no Brasil é mui- to ineficaz. Quando comparamos com outros países o quan- to gastamos e os resultados obtidos ficamos muito atrás. Isso acontece em educação, por exemplo. Resultados do Brasil em políticas públicas são bem piores se comparados com outros países em condições similares. Dito isso, saúde não é uma dessas áreas. Nessa área, pegando os indicadores, o Brasil está bem em relação ao mundo. Temos problemas, é claro, mas os indicadores ligados à saúde no Brasil são bem razoáveis. Temos um modelo peculiar em que público e privado convivem. Acho que a gente tem um desafio grande no SUS, que é um modelo de muito sucesso mas que preci- sa ser fortalecido. Temos uma série de problemas regulató- rios, dificuldade em importação, dificuldade na regulação de acesso a remédios.
Em qualquer país desenvolvido existe uma agência que
define os remédios aos quais a população terá acesso, com critérios, não é uma coisa descoordenada, descentralizada, em que cada médico indica e gera uma série de proble- mas graves. Lá fora o judiciário costuma ser deferente às agências, como nos EUA, na Inglaterra. No Brasil a gente foi criando essa desordem em que alguém aparece com um medicamento xpto e alguém prescreve esse remédio, um tipo de prótese ou tratamento… Esse processo, muito descoordenado, gera custos muito altos e acaba faltando dinheiro onde importa. É uma questão de má alocação de recursos que, no fim, prejudica a saúde da população. E há problemas de governança e controle.
Então, temos de discutir como podemos melhorar, com regulação, a eficácia e a eficiência do sistema de saúde. Para melhorar a qualidade de vida da população. Os procedi- mentos no Brasil são muito mais caros que em outros países, remédios que não são autorizados lá fora e aqui são, com acesso conquistado por via judicial. Por outro lado, não con- seguimos fazer atividades básicas de saúde porque os recur- sos não estão reservados para isso. Então temos uma desor- ganização que tem piorado muito na última década e meia.
O senhor falou sobre o uso ineficiente dos recursos e a incorporação de terapias e medicamentos sem a eficácia comprovada. A legislação recentemente sancionada, que abre espaço para a cobertura de procedimentos não previstos no rol da ANS, pode intensificar esses problemas?
Essa falta de governança na política pública vai prejudicar a população. Alguém consegue um benefício que não está previsto, e se não está previsto existem boas razões para isso, e por outro lado pessoas estão pagando mais caro pe- los seus planos de saúde. Essa conta tem de se equilibrar. Estamos vendo as dificuldades dos planos de saúde… No Brasil tem uma percepção de que é uma batalha entre o consumidor e o plano de saúde, mas não é, é uma batalha do consumidor com o próprio consumidor. Essa conta cai no colo do consumidor. Então, quando um indivíduo tem acesso a uma prótese muito cara, isso gera um custo maior para o sistema, aumenta a sinistralidade…
Muitas pessoas não entendem o princípio do mutualismo que envolve os planos de saúde.
Sim, isso é um princípio básico. Mas as pessoas ficam nes- sa fantasia e com isso vamos estrangulando o sistema. Os dados de saúde no Brasil são bem razoáveis quando se com- para com outros países, mas eu temo que a saúde no Brasil vá ficar cada vez mais cara. Essa conta vai cair no colo da população. O Brasil é um país em que a atividade cres- ce pouco, a renda cresce pouco e a ineficácia da política pública prejudica a população. E todos nós pagamos por isso. Não é à toa que o Brasil cresceu pouco nos últimos 40 anos. Tem um pouco dessa busca permanente pelo opor- tunismo, à medida em que se pula a cerca da discriciona- riedade, de conseguir um benefício para alguém sem levar em conta o uso discricionário de suas atribuições. A saúde está dentro disso.
Ainda nessa questão do uso ineficiente do uso dos recursos, sempre se recorre ao dispositivo constitucional que afirma que a saúde é um direito de todos e um dever do estado. Na sua opinião, como esse princípio deve ser observado considerando os recursos disponíveis na saúde suplementar e o orçamento público?
Temos de discutir como melhoramos o acesso da população à saúde. Para isso tem de olhar o conjunto, não pode olhar individualmente, precisa de coordenação política porque te- mos restrições de recursos. Princípios gerais como esse cons- tam de constituições e declarações no mundo inteiro. Mas o resto do mundo sabe que na hora de implantar um princípio como esse tem de se levar em conta quais tratamentos são mais eficazes, se eu gasto aqui vou deixar de gastar acolá, como eu garanto que os recursos públicos estão sendo gastos de maneira a cuidar da população como um todo, e não quem oportunisticamente chegou primeiro e conseguiu uma liminar. Porque vai faltar para o outro lá na frente.
Temos de discutir como melhoramos o acesso da população à saúde. Para isso tem de olhar o conjunto, não pode olhar individualmente, precisa de coordenação política.
Isso que o resto do mundo faz: as agências de saúde dos diversos países dizem “esse remédio passou por nossos testes, estão autorizados”. E as pessoas e o judiciário res- peitam a decisão da autoridade de saúde na parte técnica. Esse é o princípio que vale na grande maioria dos países, porque você tem de levar em conta o bem coletivo, não pode ir para o caso particular. No Brasil, uma frase gené- rica como essa vira o gatilho para a interpretação de que tudo é permitido. Se um médico deu parecer, ninguém quer saber se é caro ou não. Então, resumindo, primeiro esses temas são técnicos. Segundo, tem de olhar o bem comum, se não muita gente vai ficar no fim da fila.
O olhar econômico tem de entrar na equação.
Mais que econômico, o olhar é social. Para atingirmos o bem-estar da sociedade é preciso olhar o tema tratando o todo, não o particular. Tem de ter o olhar social para os mais vulneráveis, enfrentar os dilemas e estabelecer prioridades. Os programas sociais de saúde do governo, de atenção à família, eles estão esvaziados de recursos. Aqueles programas coordenados para cuidar dos mais vulneráveis, de forma integrada, conseguir definir priori- dades, saber onde precisa mais e menos, estão esvaziados por gastos feitos de forma descoordenada, que atendem a interesses particulares. Sem olhar o todo. Isso significa que o país vai ter uma saúde pior, vai crescer menos. Essa fragmentação da política pública, essa falta de governan- ça e esse oportunismo que se vale de liminares, isso tudo leva à degradação da política pública no Brasil.
Como resolver essa falta de coordenação e a fragmentação da política pública de saúde?
Esse é um desafio porque o Brasil teve uma trajetória em
que nenhum outro país arrumado entrou. Isso vale para o regime tributário, com milhares de regras diferentes, e regras particulares que não consideram o todo. Isso leva o país a crescer pouco porque leva à escolha deficiente do que produzir, escolha de tecnologias ineficientes porque pagam menos imposto. Uma série de regrinhas particu- lares para proteger setor a ou b ou c. Como desarmamos isso? Parece muito difícil de reverter.
Quais deveriam ser as prioridades em políticas públicas de saúde dos novos mandatos no executivo que assumirão em 2023?
Para começar, vai ser muito difícil porque a Presidência da República foi esvaziada. O Orçamento foi capturado pelo Congresso. Isso aconteceu ao longo dos últimos dez anos, desde o governo Dilma, passando pelo Temer e agora com o Bolsonaro. A primeira coisa seria reconstruir a capacidade do Executivo em coordenar o Orçamento. Inclusive na área da saúde, uma das áreas mais afetadas por essa fragmentação. Mas para isso vai ter de enfrentar o Congresso. Convencer o congresso que essa fragmen- tação está piorando o país, problemas sociais em várias áreas, tem de reconstruir. E isso vai ser muito difícil, pois para os parlamentares o atual panorama é ótimo, eles têm o poder de gastar como quiserem.
A sociedade como um todo deveria se envolver na discussão sobre a saúde?
Ela se envolve, mas também se envolve nessa questão dos grupos organizados. A gente não consegue discutir o bem comum no Brasil. Olha a dificuldade que foi a reforma tributária. Um benefício tributário aqui acaba gerando aumento na conta de energia, na compra de equipamen- to, porque o Estado, para compensar esses benefícios, tira de outro lado.
Pensando no longo prazo, em que queremos um maior acesso ao sistema de saúde e mais qualidade no cuidado, quais deveriam ser as premissas de políticas de Estado, que não mudem de governo para governo?
Primeiro deveríamos olhar as melhores práticas que tem no mundo e criar regras de proteção que evitem o favore- cimento a empresas ineficientes ou a escolha de tecnolo- gias atrasadas. Resgatar a capacidade do governo de polí- tica pública. E ter uma discussão mais profunda sobre o desenho regulatório, os controles no país.