Para Álvaro Nagib Atallah, diretor do Centro Cochrane do Brasil, não há sistema desaúde que sobreviva semmedicina baseada emevidências
Se existe alguém capaz de falar com autoridade sobre Medicina Baseada em Evidências (MBE), esse alguém é o médico Álvaro Nagib Atallah, fun- dador e diretor do Centro Cochrane do Brasil. Há mais de 30 anos ele se dedica a esse tema – movido pela certeza de que toda decisão médica deve ser pautada, acima de tudo, por provas científicas que atestem a efetividade, a eficiência e a segurança de qualquer tratamento. Pode até parecer algo óbvio, mas não é bem assim. Parte significativa dos profissionais da saúde ainda toma decisões baseada única e exclusivamente na sua própria experiência, ignorando as revisões sistemáticas que apontam esta ou aquela conduta como sendo a melhor opção. “Não tenho dados para afirmar que esse é o caso da maioria dos médicos brasileiros”, diz Atallah. “O que posso dizer, com a devida preocupação, é que apenas 20% das escolas médicas do Brasil têm Medicina Baseada em Evidências no currículo.” Na entrevista a seguir, o especialista fala do impacto que a MBE pode ter no custo da assistência à saúde, da importância da comprovação científica no equacionamento da judicialização e do trabalha capitaneado por ele no Cochrane. Confira.
VisãO saúde – saber qual é o melhor tratamento para seu problema de saúde é um direito fundamental da pessoa, no sentido de ser um direito civilizatório, humano?
Álvaro Atallah Sem dúvida. Daí a importância da Medicina Baseada em Evidências e de quem trabalha para produzir essas evidências. levar conhecimento científico a todos, em particular naquilo que concerne à saúde, é sempre o melhor caminho. Parece-me fun- damental que o paciente saiba, com base nas melhores evidências disponíveis, qual é a melhor prevenção ou o melhor tratamento, para poder escolher. É essencial que juízes, promotores, advogados e gestores também saibam, para que se possa racionalizar o uso dos recur- sos. Decidir questões de saúde baseando-se na “acholo- gia” é perigoso. As decisões devem ser fundamentadas em provas. E precisam ser independentes. Emoção, fan- tasia, interesses econômicos… Nada disso pode influen- ciar. Isenção é um dos compromissos da MBE – e da Cochrane, da qual sou um dos fundadores.
Qual é o impacto que a MBe pode ter nos custos da assistência à saúde?
Sem MBE, corre-se o risco de inviabilizar a assistência à saú- de. Exemplo: existem marca-passos de r$ 100 mil no mer- cado. Por ser o mais caro e sofisticado, ele é sempre a melhor opção? Claro que não. Dependendo do caso, um marcapasso de r$ 5 mil pode resolver o problema do paciente. A escolha, seja pelo mais simples, seja pelo mais complexo, tem de ser embasada em evidências. Isso também vale para um medicamento como a Aspirina [ácido acetilsalicílico], que é barato e funciona muito bem em casos de infarto. Por que optar por um stent de r$ 10 mil quando um comprimi- do de 10 centavos resolve o problema? Em um país como o Brasil, que traz na sua Constituição o compromisso de ofe- recer saúde para todos, não há como ignorar essas questões.
Cite mais um ou dois exemplos.
Um dos tratamentos revisados na Cochrane foi o da ce- gueira do idoso. Custava r$ 20 mil, com uso de laser e emprego de uma droga caríssima. Milhões de pessoas pre
cisam desse tratamento, muitas delas até três vezes em um ano. Experimente multiplicar 3 milhões de tratamentos por r$ 20 mil. Chega-se à cifra de r$ 60 bilhões. veja bem, r$ 60 bilhões. Isso é quase o investimento total do SUS. Ao avaliar as tecnologias, descobrimos que um trata- mento de apenas r$ 30 [quase 700 vezes mais barato] ga- rantia os mesmos resultados. Ou resultados até melhores, com mais efetividade e segurança. Com a chamada fratu- ra de colles [no punho], foi mais ou menos a mesma coisa. Usava-se muito uma placa para fixar o osso que hoje custa cerca de r$ 15 mil. Junto com o pessoal da Ortopedia da Escola Paulista de Medicina, testamos o uso de pinos que custam r$ 15 e verificamos que eles funcionam tão bem quanto a placa.
Quando a medicina não é baseada em evidências, quem acaba pagando?
O paciente e a sociedade, porque todos nós pagamos a con- ta, sempre. Daí a importância do engajamento em torno dessa questão. Se dependesse de mim, a importância das evidências científicas seria ensinada na escola, para alunos do básico e do fundamental.
em quais circunstâncias é válido utilizar tratamentos experimentais?
Se não existem evidências de que o tratamento em questão é efetivo, eficiente e seguro, sou contra sua utilização, quaisquer que sejam as circunstâncias.
Qual é sua posição quanto ao julgamento no sTF, que decidirá pela obrigatoriedade ou não do fornecimento de remédios de alto custo e sem registro na anvisa?
A questão não deveria ser o alto custo dos medicamentos. A pergunta correta é muito mais simples: deve ser fornecido aquilo que funciona melhor ou não? Se a droga de alto custo funciona e não existem alternativas, é lógico que ela deve ser fornecida. Caso as alternativas existam, é preciso verificar se são mais ou menos efetivas e seguras.
Se você tem de tratar uma população inteira, precisa escolher o tratamento que vai beneficiar o maior número de indivíduos
a MBe é o melhor remédio para a judicialização da saúde?
É um dos remédios. Não pode haver espaço para “achismos” no tribunal. As decisões devem ser tomadas com base nos critérios de efetividade, eficiência e segurança. O trata- mento judicializado funciona no mundo real? É a solução mais simples e barata? Faz mais bem do que mal para o paciente? Isso vale para tudo, desde as coisas mais simples até as mais complexas. Participei de uma defesa de tese sobre tratamentos para dor nos joelhos. tem médico que manda tratar com gelo, outros preferem choque, há quem pres- creva repouso, outros recomendam exercício… Afinal, qual é o melhor tratamento mais efetivo, eficiente e seguro? É preciso mapear e descobrir, para não ficar perdendo tem- po. Alguns tratamentos de câncer podem custar r$ 30 mil por mês e não curam, são capazes apenas de prolongar a vida de alguns poucos indivíduos por mais 3 ou 4 meses. Entendo a dificuldade na hora de decidir pela garantia de acesso a um tratamento desse tipo. Mas não cabe a mim ou à Cochrane julgar. Nosso papel é colocar nas mãos do paciente, do promotor ou do juiz a melhor informação científica. Pessoalmente, acho importante levar em conta o principio da reserva do possível, pois o dinheiro é finito. Se você tem de tratar uma população inteira, como a brasileira, composta de 204 milhões de pessoas, precisa escolher aquilo que vai beneficiar o maior número de indivíduos.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) parece estar empenhada na instituição de diretrizes baseadas em evidências clínicas. Como o senhor analisa esse movimento?
É uma boa notícia. A Anvisa usa muito os trabalhos da Cochrane para tomar decisões. Seria conveniente que a ANS também o fizesse.
Como diretor de uma entidade que defende comprovação científica acima de tudo, o senhor enxerga incompatibilidade entre fé e ciência?
Nenhuma. Não preciso ser ateu para entender a impor- tância da comprovação científica. A esperança de um paciente ou de seus familiares é legítima, ainda que a espera seja por um milagre. O que a MBE faz é impedir que se vendam falsas esperanças.