Os ex-supervisores do Fórum da Saúde, do CNJ, falam de medidas para reduzir a judicialização
Judicialização na área médica. Essa é uma questão importante que afeta orçamentos de órgãos federais, de estados e municípios e dificulta o planejamento de políticas públicas já que decisões judiciais impõem o uso de verbas para cumprimento de ordens que não estavam previstas. No Judiciário, o crescimento no número de processos é uma preocupação antiga que já gerou frutos, como a criação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) do Fórum Nacional de Saúde que tem a incumbência de elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas para aperfeiçoar procedimentos.
Entre as medidas adotadas pelo Fórum esteve a qualificação das ferramentas implantadas para dar subsídio aos magistrados com informações técnico-científicas e garantir decisões baseadas em evidências. Foram criadas os Núcleos de Apoio Técnico ao Poder Judiciário federal e estaduais (NatJus) e a plataforma nacional e-NatJus. O foco desses sistemas está no poder público mas começa a ser cogitada um núcleo de apoio técnico nacional para tratar da saúde suplementar.
Para discutir o tema da judicialização e as medidas do Conselho para enfrentar esse problema, conversamos com os ex-supervisoros do Fórum da Saúde, juíza Candice Jobim, e o sub-procurador geral de Justiça, Arnaldo Hossepian.
VISÃO SAÚDE – Como o Fórum Nacional de Saúde vem colaborando para que as decisões jurídicas possam ser tomadas de forma científica? Qual o grande legado desse órgão?
CANDICE JOBIM – Essa pergunta reflete o centro e o coração do trabalho que vem sendo feito pelo CNJ há alguns anos que é o sistema eNatJus, um portal onde estão armaze- nadas todas as notas técnicas emitidas pelos Núcleos de Apoio Técnico ao Judiciário de cada Tribunal, de cada estado, e também os pareceres técnicos que são elabora- dos pelo Hospital Sírio-Libanês. Tanto as notas técnicas – elaboradas para casos concretos nos quais o magistrado está com o caso nas mãos e as solicita – quanto para o nacional, que é um serviço prestado pelo hospital Albert Einstein e centralizado no CNJ – levam sempre em con- sideração as evidências científicas. O magistrado hoje tem esse mecanismo de solicitar uma nota técnica pra embasar suas decisões em evidência científica e um lau- do elaborado por um médico especializado.
ARNALDO HOSSEPIAN – Nesse âmbito, o Poder Judiciário é o grande maestro mas tem outros integrantes dessa orquestra que concorreram para que houvesse esse movimento na área da saúde. É bom lembrar quando em 2010 o minis- tro Gilmar Mendes, então presidente do STJ, começou a se preocupar com questão da judicialização da saúde e a mostrar a necessidade de que o Juiz de Direito tivesse in- formações nessa questão tão árida. Ele é conhecedor de leis e não de tecnologia na área da ciência médica.
Com a resolução 107, de 2010, foi instituído o Fórum para monitoramento e resolução das demandas de as- sistência à saúde com os Núcleos para essa orientação. Quando eu chego, em 2016, o grupo que acompanhou a conselheira Clarice concluiu que era necessário dar um caráter mais profissional a esses núcleos de capacitação e estruturá-los nas 27 unidades da federação.
Veio então a resolução 238 de 2016, que deu alguns comandos, e chegou aliada a um termo de cooperação que o ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do STJ, firmou com o Ministério da Saúde. Nós pude- mos, então, trazer o Hospital Sírio-Libanês para dentro do sistema de justiça.
E qual a função dele? Primeiro capacitar os núcleos técnicos espalhados pelas 27 unidades da federação, um trabalho bastante complexo porque quando fala em núcleos precisamos ter presente que é preciso montar um arranjo que envolva profissionais de secretárias de saúde, conselho regional de medicina, universidades, e outros. E que esses novos membros venham de boa von- tade, portanto sem remuneração, compor esses núcleos para prestar um serviço ao judiciário. A preocupação do CNJ foi tão grande que esses novos membros têm seus nomes publicados.
“À medida que você tem uma judicialização mais acurada na hora da decisão você pode evitar que o cofre público seja sangrado”
E quem pagou por tudo isso? O governo federal por meio do Proadi-SUS (Programa de Apoio ao Desenvolvi- mento Institucional do SUS) e com hospitais de excelên- cia que investem em algum projeto de desenvolvimento que possa ser implantado no país.
Além disso, à medida que você tem uma judicializa- ção mais acurada na hora da decisão você pode evitar que o cofre público seja sangrado. Por exemplo, a maior parte das demandas buscam medicamentos que não estão nos sistemas de saúde, nem na lista do Rename (Relação Na- cional de Medicamentos Essenciais), muitas vezes nem na ANS (Agência Nacional de Saúde) e o Juiz de Direito, no limite, acaba determinando que ele seja concedido. Foi verificada também a necessidade da criação de núcleo técnico para as urgências, baseado dentro do CNJ, que atende qualquer parte do país.
“É bom lembrar que os magistrados não são obrigados a seguir as notas técnicas em virtude da independência funcional prevista na Constituição”
Qual a quantidade de notas técnicas e pareceres disponíveis no NatJus?
HOSSEPIAN – Em 31 de outubro, o NatJus nacional tinha 13.243 notas técnicas na base do CNJ. Os estaduais con- tavam com 30.966 notas técnicas, 80 pareceres técnicos científicos. Estamos falando de um sistema inaugurado em 17 de novembro de 2017, portanto um sistema que tem quatro anos.
É preciso ressaltar ainda a dificuldade de interligar- mos os 27 Tribunais de Justiça e os federais na base do CNJ para alimentar a base de dados. Também há a ques- tão da qualificação das notas técnicas estaduais. Para en- trar na base do CNJ é preciso preencher o mínimo dos requisitos e isso significa que há estados que podem ter uma base de dados menor na plataforma nacional pois não têm o padrão mínimo. Para estar completamente pronto é preciso melhorar muito ainda.
JOBIM – Um ponto interessante é que desde que foi criado, havia a determinação de que os tribunais alimentassem o e-NatJus com suas notas técnicas mas como os sistemas não eram interligados, essas informações não eram en- caminhadas e ficamos com um gap no número de notas técnicas. Para mudar isso, colocamos essa inserção como um item do Prêmio CNJ de Qualidade que tem como objetivo estimular os tribunais na excelência da gestão e planejamento. Esse é um prêmio muito valorizado e houve uma corrida dos tribunais para inserirem as notas técnicas, tanto as atuais quanto as anteriores, para ganha- rem a pontuação.
Há resistência dos magistrados em aceitar o conteúdo das notas técnicas?
JOBIM – A resistência que alguns tiveram foi gradualmente diminuindo muito pelo trabalho do Fórum Nacional da Saúde. Hoje sentimos que a maioria acha a ferramenta muito importante para eles, representa uma segurança quando se indefere um medicamento baseado em notas técnicas com evidência científica.
É bom lembrar que os magistrados não são obrigados a seguir as notas técnicas em virtude da independência funcional prevista na Constituição. Cada magistrado pode decidir de acordo com sua convicção jurídica. Nós tentamos levantar dados para sabermos se a maioria acompanha, ou não, as notas técnicas. Mas hoje ainda não é possível sabermos disso mas em um determinado momento do futuro conseguiremos. O ministro Luiz Fux, atual presidente do STF, está tentando implantar um sistema central, a PDPJ (Plataforma Digital do Po- der Judiciário) que conterá cinco blocos virtuais. O Na- tJus é uma das prioridades a ser inserido nesse projeto.
HOSSEPIAN – A ideia é de os estados terem prevalência. O nacional veio servir de amparo aos estados que não ti- nham estrutura suficiente para dar conta desse recado. A proposta é termos NatJus espalhados pelo país e tão bem azeitados que não seja mais necessário o NatJus nacional, que tem dinheiro público.
Houve também uma participação importante na pandemia.
JOBIM – Desde o início da pandemia fizemos diversas re- uniões e pensamos em enviar recomendações aos juízes. Era um momento difícil que faltavam respiradores, más- caras, leitos de UTI e nossa primeira recomendação foi de deferência aos gestores públicos, apoiar o que eles esti- vessem definindo já que eles contavam com maior noção do sistema sanitário naquele momento. Era um estado de exceção.