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Não existe sistema de saúde perfeito

Mark Britnell assessorou governos e empresas de 60 países diferentes e reuniu em um livro as melhores experiências que viu, uma delas no brasil

Líder da área de saúde da empresa internacional de consultoria KPMG, o britânico Mark Britnell certamente é uma das pessoas com visão mais abrangente – e ao mesmo tempo detalhada – dos diferentes sistemas nacionais de saúde. Também pudera: sua atuação profissional, na qual assessora governos e empresas a melhorar a gestão de hospitais e o atendimento a pacientes, o levou a visitar, entre 2009 e 2015, mais de 60 países dos cinco continentes, nos quais teve a oportunidade de conferir, in loco, o que funciona e o que não traz resultados. Os aprendizados dessa vasta experiência internacional, acumulada em cerca de 200 viagens, estão reunidos no livro In Search of the Perfect Health System [Em Busca do Sistema de Saúde Perfeito], publicado em 2015. Na obra, o autor deixa claro que sua busca por um único sistema de saúde perfeito foi infrutífera; mas, por outro lado, ele descreve 12 experiências nacionais que podem servir de inspiração. E uma delas é do Brasil, quem diria. Na entrevista que deu a Visão Saúde, Britnell fala sobre o que há de bom e de ruim no sistema de saúde brasileiro, além de discorrer sobre os principais desafios globais para melhorar o acesso e a qualidade da assistência à saúde.

Foto: divulgação

Visão saúde em seu livro In Search of the Perfect Health System, o senhor conclui que não existe um sistema de saúde nacional perfeito. mas, se existisse, como seria?

MARK BRITNELL – Todos os países têm algo a ensinar e também algo a aprender. Eu analisei as forças e fraquezas de 30 países, para que políticos, profissionais de saúde, pacientes e a sociedade possam entender melhor que todos os sistemas nacionais enfrentam pressões. Então eu selecionei 12 siste- mas de alto desempenho com os quais todos os países podem aprender, incluindo um exemplo do Brasil: atenção primária em Israel; serviços comunitários no Brasil [nota da redação: o autor se refere ao Programa Saúde da Família, criado pelo Mi- nistério da Saúde em 1994 e rebatizado, em 2011, como Estra- tégia Saúde da Família]; saúde mental e bem-estar na Austrá- lia; promoção da saúde nos países nórdicos; empoderamento do paciente e da comunidade em países da África; pesquisa e desenvolvimento nos EUA; velocidade de inovação na Índia; informação, comunicação e tecnologia em Cingapura; op- ções de sistema de cuidado na França; financiamento à saúde na Suíça; e cuidado ao idoso no Japão.

É viável oferecer saúde universal gratuita considerando a escalada dos custos em medicamentos, exames e procedimentos?

Essa é uma meta muito complexa, principalmente em um país enorme como o Brasil, no qual o sistema de saúde não é integrado e o PIB per capita é baixo comparado a outros paí- ses. Por outro lado, a busca por um sistema de saúde universal vai muito além de apenas aumentar o gasto na assistência. O modelo de cuidado, o desempenho e o acesso do sistema têm muito mais impacto do que o aumento de gastos. O desafio é investir e gerir o orçamento do sistema de forma eficiente. Além disso, fraudes e corrupção também têm um papel im- portante nesse contexto, ao consumir parte dos investimentos.

Por que o programa saúde da família é um bom exemplo para o mundo?

Se bem executados, serviços comunitários como o Programa Saúde da Família são um ótimo meio de conhecer a população, trabalhando próximo dos cidadãos, e, assim, oferecer promoção da saúde. Esse tipo de programa também pode facilitar o cuida- do personalizado e coordenado, já que possui diferentes profis- sionais de saúde. Se o Brasil conseguisse conectar esse programa com tecnologias como o big data, analytics e telemedicina, agre- garia ainda mais valor ao sistema de saúde brasileiro.

Como o senhor avalia o sistema brasileiro de saúde em comparação com os de outros países em desenvolvimento?

O SUS é uma vantagem do Brasil em relação a outros países em desenvolvimento, mas qualquer sistema público precisa de uma economia forte e transparente para apoiá-lo. Servi- ços públicos ruins, por sua vez, resultam em maiores gastos para o país. O Brasil gasta cerca de 10% do PIB em saú- de, mas a gestão e a qualidade do sistema têm de melhorar, assim como a expectativa de vida. OS EUA, em compara- ção, gastam cerca de 18% do PIB em um sistema de saúde com alcance limitado. É importante destacar que um bom sistema nacional de saúde leva à geração de riquezas. Na KPMG, estimamos que para cada 1 dólar gasto em assistên- cia à saúde, são gerados 4 dólares na economia por causa da cadeia de alto valor associada a esse sistema.

Como o senhor enxerga a importância e o futuro dos planos de saúde privados no brasil?

No meu livro, eu escrevo sobre o fato de o sistema de saúde privado no Brasil ter se tornado grande demais para ser visto como um sistema paralelo. A redefinição de sua relação com a esfera pública deveria ser o próximo passo da evolução do sistema como um todo. A desconfiança instintiva a respeito dos planos privados precisa ser transformada por uma relação mais colaborativa e transparente visando o benefício dos pa- cientes. Atualmente, os sistemas público e privado, no Brasil, parecem estar indo em direções contrárias, e isso não é bom para o país. Em diversos países de renda média há exemplos bem-sucedidos de maior colaboração entre o público e o pri- vado, incluindo parcerias de longo prazo. Isso pode envolver novas escolas médicas conjuntas, novos centros de assistência e pacientes do sistema público sendo atendidos por estruturas privadas com base em preços predeterminados.

A população brasileira está envelhecendo. Quais são os princípios que o brasil deve seguir ao planejar a assistência aos idosos e quais experiências internacionais podem servir de inspiração nessa área? Quase todos os países do mundo estão discutindo os principais desafios decorrentes das mudanças demográficas em geral e do

envelhecimento da população especificamente. Alguns pou- cos – como Japão, Holanda e Cingapura – já estão tomando me- didas quanto a isso. As estatísticas falam por si só: com o aumen- to da expectativa de vida, o número de pessoas com demência vai subir dos atuais 44 milhões para 135 milhões em 2050. Lidar com isso e outras necessidades de saúde dos idosos será um im- portante desafio global. No meu livro, eu descrevo algumas das melhores experiências internacionais nesse sentido, incluindo comunidades que têm a atribuição de cuidar dos idosos, como ocorre no Japão. Lá, o cuidado integrado na comunidade ofere- ce programas de bem-estar, assistência à saúde, cuidados conti- nuados e prevenção de doenças. Esse tipo de abordagem evita o risco de se criarem “guetos de cabelos bancos”.

O Brasil seguiu o modelo hospitalocêntrico predominante nos países ocidentais do século 20, que remunera por procedimentos. o senhor acredita que devemos seguir nesse caminho?

O ideal é que os modelos de remuneração incentivem a ob- tenção de bons resultados no cuidado aos pacientes, e tam- bém uma boa experiência dos pacientes durante a assistência. Para isso ocorrer, é preciso haver uma mudança de comporta- mento dos provedores de serviços e dos modelos operacionais. O fee-for-service [nota da redação: modelo de remuneração predominante no Brasil, que paga por procedimento] premia o volume em detrimento da qualidade e pouco incentiva os provedores a investir em inovação para melhorar o cuidado à saúde. Apesar disso, o Diagnosis Related Group (DRG) [nota da redação: modelo de remuneração que se coloca como alternativa ao fee-for-service] é administrativa e tecnicamente mais complexo e pode não ser suficiente para reduzir custos e aumentar a qualidade. Um país de renda média que quer adotar o DRG precisa ter muito cuidado em sua implantação, com projetos-piloto e tetos de gastos, além de promover as adaptações necessárias ao contexto local. No futuro, acredito que modelos mistos de remuneração poderão trazer mais efi- ciência e ajudar a incentivar a busca por metas de qualidade.

O mundo está usando sabiamente a tecnologia em favor da saúde?

Nós vemos exemplos positivos da tecnologia auxiliando na qualidade dos serviços e na redução de custo dos sistemas de saúde. Recentemente, eu visitei Israel e constatei o bom uso da inteligência artificial para prever quando os pacientes ficarão doentes, além da aplicação da telemedicina para agilizar consultas e formar um banco de dados único do histórico médico dos pacientes. Clalit, a mais importante organização de saúde sem fins lucrativos daquele país tem mais de 70% dos seus 4,2 milhões de membros acessando on-line seus prontuários eletrônicos, o que promove o envol- vimento e a educação desses pacientes. O compartilhamen- to em tempo real de informações inclui registro de doenças, uso dos serviços médicos, exames realizados, medicamentos prescritos e dados sociodemográficos. Essa integração efe- tiva é uma ferramenta poderosa na melhoria de qualidade da assistência e permite, entre outras coisas, benchmarkings em tempo real da qualidade do sistema de saúde, com dados sobre acesso, experiência dos pacientes e custos. A questão que se coloca para as organizações de saúde é menos sobre como tecnologia e qualidade podem andar juntas na saúde, e mais sobre como implantar as mudanças necessárias.

Em linhas gerais, como o senhor enxerga o futuro do cuidado à saúde?

A busca pela saúde universalizada é uma prioridade global, e isso será decisivo para moldar o cuidado à saúde nos próximos anos. Apenas 60 dos 192 países do mundo já conseguiram atingir a cobertura universalizada, e o restante está exposto a custos catastróficos nos sistemas de saúde. Os países estão cada vez mais conscientes de que, ao prover saúde, estão não apenas atendendo um direito moral e social dos cidadãos, mas também formando uma vantagem competitiva em ter- mos econômicos e políticos. Isso é importante, pois os po- líticos estão percebendo que investimento em assistência à saúde para todos é um valor em si, e não apenas um gasto. Estimativas apontam que um ano de aumento na expectativa de vida da população pode fazer o PIB per capita crescer até 4%. A Lancet Comission indicou que reduções na mortalida- de em países de baixa e média renda foram responsáveis por 11% do crescimento econômico mundial nos últimos anos. Considerando esse impacto direto da melhoria da saúde na geração de riqueza, novos fundos globais para a saúde aumen- taram substancialmente e se mantêm como destino preferen- cial de doadores internacionais. A KPMG, por sua vez, criou um novo centro de excelência em saúde para ajudar os países a enfrentar essas questões, oferecendo ferramentas, inteligên- cia e nossa experiência acumulada para fazer das reformas necessárias um sucesso.

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