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Memórias saudáveis

Ex-presidente Fernando Henrique Cardoso relembra conquistas importantes na saúde que tiveram sua participação

O sociólogo, professor universitário e ex-Presidente da República Fernando Henrique Cardoso (FHC) é frequentemente associado à estabilização econômica do Brasil, iniciada com o lançamento do Plano Real, em 1994, quando era Ministro da Fazen- da do governo Itamar Franco, e mantida com reformas estruturais durante seus dois

mandatos presidenciais, entre 1995 e 2003. Porém, FHC também deixou sua marca na área de saúde do país. Primeiramente, como senador e um dos líderes da Assembleia Nacional de Cons- tituinte responsável por redigir e aprovar a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – entre outros importantes avanços sociais, a nova lei suprema do país formalizou a saúde como um direito social e instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS).

Ao longo de seus oito anos como o 34º Presidente da República, Fernando Henrique obteve avanços significativos na área da saúde, que se refletiram, entre outros, na redução da mortalida- de infantil em 33% e da mortalidade materna em 34%, segundo dados do Ministério da Saúde. No acesso a medicamentos, FHC sancionou duas importantes leis, de licenciamento compulsó- rio de fármacos em casos de interesse de saúde pública e de incentivo aos medicamentos gené- ricos. No financiamento à saúde, estabeleceu a destinação de patamares mínimos de recursos do governo federal, estados e municípios para a saúde pública, por meio da sanção da Emenda Constitucional nº 29.

O governo FHC se notabilizou, ainda, por tornar mais rigorosa a política antitabagista, proi- bindo a publicidade de cigarros e introduzindo mensagens de alerta nas embalagens; por im- plantar um programa nacional de combate à Aids; e por ter criado a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Atualmente, Fernando Henrique Cardoso preside a fundação que leva seu nome e participa de conselhos consultivos em diferentes órgãos no exterior, como Clinton Global Initiative, Uni- versidade Brown e United Nations Foundation. Também é membro da Academia Brasileira de Letras e presidente de honra do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Nesta entrevis- ta exclusiva à Visão Saúde, o ex-presidente comenta os principais avanços obtidos por seu governo na área da saúde e compartilha sua visão sobre o atual cenário dos sistemas público e privado.

FOTO: DIVULGAÇÃO INSTITUTO FHC

VISÃO SAÚDE – A Constituição Federal

de 1988 estabeleceu a saúde como direito social fundamental a ser garantido pelo Estado. Como o senhor avalia esse dispositivo constitucional hoje, 30 anos depois?

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Esse disposi-

tivo constitucional se deveu à luta de um conjunto de médicos, especialmente os higienistas, que desejavam disponibilizar o atendimento de saúde para toda a po- pulação. Até então, dispunham dele os membros de corporações, especialmente os funcionários públicos a os associados aos Institutos de Pensão; as “colônias” mi- gratórias eram atendidas pelos hospitais de benemerên- cia de suas comunidades e os mais pobres pelas Santas Casas. Fora disso, o serviço de saúde só era disponível para quem podia pagar. Portanto, a Constituição deu um passo importante para democratizar e mesmo uni- versalizar o atendimento de saúde.

A Lei 9.656, sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, e a criação da ANS ocorreram durante sua presidência. Por que foram necessários?

Porque não é correto que quem possa pagar se utilize dos fundos públicos; nas sociedades modernas con- vém juntar o público com o privado. Poucos podem arcar com os custos da saúde, que são crescentes, sem os planos.

Qual é a sua visão sobre o modelo ideal de coexistência entre o SUS e a saúde suplementar? O SUS foi uma resposta brasileira e criativa exatamen- te porque permite sua coexistência com a saúde suple- mentar. Como disse, os custos de saúde são crescentes (a pesquisa, os remédios, o equipamento e o pessoal treinado); quanto mais se possa dispor de sistemas que combinem os dois, o público e o privado, melhor.

Como Presidente da República, o senhor obteve significativa redução na mortalidade infantil e relevante expansão do saneamento básico. Como isso foi conquistado?

Só há uma solução: dispor de recursos crescentes, ter planejamento e persistir na boa administração. A queda da mortalidade infantil se deveu à melhoria da renda da população e, principalmente, à cooperação público/privado (por exemplo, os esforços dos progra- mas da dra. Zilda Arns) e à introdução das equipes de médicos de família no SUS. Além, é claro, da expansão dos programas de vacinação, com os quais o Brasil tem experiência positiva.

Por favor, conte-nos um pouco sobre os princípios adotados no bem-sucedido programa de combate à Aids, implantado em seu governo.

O êxito no combate à Aids adveio de o governo haver en- frentado abertamente a questão e haver pedido apoio da sociedade civil, inclusive das organizações dos próprios pacientes. Fizemos campanhas claras pelas TVs e, ade- mais, conseguimos baixar o custo dos antivirais especí- ficos, chegando mesmo a ameaçar a quebra de patentes.

A queda da mortalidade infantil se deveu à melhoria da renda da população e, principalmente, à cooperação público/privado (por exemplo, os esforços dos programas da dra. Zilda Arns) e à introdução das equipes de médicos de família no SUS. Além, é claro, da expansão dos programas de vacinação, com os quais o Brasil tem experiência positiva

Em 1997, o Brasil viveu uma epidemia de dengue. Qual foi o aprendizado daquele episódio? Foi grande. O doutor Jatene [nota da redação: Adib Jatene, médico e um dos pioneiros em cirurgia cardía- ca no Brasil], que foi ministro da saúde, em uma das primeiras reuniões que teve comigo trouxe a questão da transmissão feita pelo Aedes aegypti. Contratamos mata-mosquitos em massa e tivemos de enfrentar re- sistências corporativas. Nesse tipo de epidemia a cha- ve é: “agir logo e agir sempre” no combate delas.

Por que seu governo decidiu ter participação ativa na regulamentação do mercado de medicamentos, com as leis dos genéricos e das patentes e a criação da Anvisa?

Porque no mundo moderno cabe aos governos, mais do que produzir, regulamentar. A Anvisa foi criada com esse espírito. Se não respeitássemos a lei de patentes não teríamos acesso ao que há de novo; se não víssemos que depois de certo tempo o que é “patenteado” pode e deve ser usado genericamente, estaríamos servindo apenas aos trusts e lobbies.

Qual é a sua avaliação sobre o atual momento do sistema de saúde brasileiro, público e privado, e quais devem ser as prioridades do novo Presidente da República nessas áreas?

Reitero, no mundo contemporâneo cabe aos governos regulamentar e, acrescento, dar previsibilidade aos mercados e ao povo. Definida a meta, há que lhe dar sequência no tempo, persistindo nela. As mudanças sociais são processos e não apenas atos. Por isso não é bom que os ministros e demais administradores mu- dem a toda hora. Eu tive um só na Fazenda e três na Saúde. Um, José Serra, durou cinco anos, Jatene pediu demissão depois de haver provido o ministério de re- cursos, e o ministro, entre estes dois, o dr. César Al- buquerque, foi quem, com a ajuda do secretário-geral Barjas Negri, começou a dar normas de funcionamen- to ao SUS. Graças a eles, pudemos avançar.

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