Pular para o conteúdo

Integrar público e privado

Para o economista André Medici, do Banco Mundial, o Brasil precisa de uma reforma na Constituição que permita fazer da saúde suplementar um sistema complementar ao SUS

Há 35 anos ele estuda temas relacionados à economia e à gestão de saúde. É administrador pela Fundação Getulio Vargas (FGV), doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em seguridade social pela Universidade de Harvard. Vive em Washing- ton, nos Estados Unidos, desde 1996. Trabalhou para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Hoje, ocupa um cargo no Banco Mundial. Escreveu mais de uma dezena de livros. Tem centenas de artigos publicados em vários idiomas. E toma parte frequentemente de iniciativas internacionais nos campos de acreditação, segurança de pacientes, planejamento estratégico e economia da saúde, entre outros. O dono desse currículo é o carioca André Medici, 61 anos, homem de múltiplas competências cuja trajetória não se resume a ambientes acadêmicos e organismos multilaterais. Antes de ir morar fora do país, ele passou por diferentes instâncias da administração pública, incluindo a Secretaria de Planejamento do Estado de São Paulo, e participou do movimento de construção do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso possivelmente explica, pelo menos em parte, suas posições contundentes sobre a gestão da saúde no Brasil. Na entrevista a seguir, Medici fala sobre público e privado, mercado em tempos de crise, modelos de remuneração, planos acessíveis e judicialização.

Foto: divulgação

Visão saúde o senhor enxerga, em algum lugar do mundo, uma política pública de saúde que possa servir de modelo para o Brasil?

André Medici – Políticas públicas devem ser desenha- das sob medida, não existem receitas mágicas. Você até pode aplicar em um país a política bem-sucedida de outro, mas sempre é preciso passá-la por um processo de adapta- ção. Em termos globais, eu diria que as políticas de saú- de são histórias de sucesso. Quem poderia imaginar, por exemplo, um aumento tão rápido da expectativa de vida ou uma redução tão drástica de endemias como se verificou nos últimos 50 anos? Ainda enfrentamos problemas graves, entre eles, o da equidade. A condição socioeconômica da maior parte da população segue limitando o acesso à saúde. Há também os gargalos de eficiência, com muitos gastos desnecessários, e o déficit de investimento em prevenção e promoção de hábitos saudáveis. O que vem funcionando melhor no mundo são justamente os esforços de prevenção e promoção. O Brasil teria muito a ganhar com isso. O câncer é uma das principais causas de morte no país justa- mente porque a maioria dos pacientes não detecta a doença precocemente. Outra frente importante de trabalho deveria ser a redução dos fatores de risco sociais e ambientais. Mui- tas mortes seriam evitadas se houvesse maior controle da violência, tanto a criminal quanto a de trânsito. Mas isso depende de uma integração eficiente de políticas de dife- rentes órgãos governamentais, não somente da saúde.

E a saúde suplementar?

Acredito que a melhor forma de organizar o sistema de saú- de é por meio de um modelo de asseguramento, seja ele público ou privado. No Brasil, criou-se um sistema univer- sal, integral e gratuito, mas que convive com um sistema voluntário [os planos de saúde] que já alcança cerca de 25% da população. Ora, todo mundo que tem acesso à saúde su- plementar pode também recorrer ao SUS. Isso acaba levan- do à utilização seletiva do serviço, só nos procedimentos de mais alto custo. Esses recursos deveriam ser investidos não nesses casos, mas na proteção dos mais pobres. É necessária uma reforma constitucional para que a saúde suplementar passe a ser complementar ao SUS, para aqueles que, embo- ra já tenham um plano de saúde, podem e querem pagar por um seguro. Dessa forma, o SUS passaria a concentrar seus recursos na população mais vulnerável, sem capacida- de de pagamento, melhorando os resultados e fazendo o melhor uso possível do dinheiro. Segundo o Banco Mun- dial, o Brasil gastava com saúde em 2014 o equivalente a US$ 1.318 por habitante. Dessa cifra, 46% eram gastos do setor público, outros 40% eram gastos diretos das famílias e apenas 14% correspondiam a planos de saúde pagos por empresas. O ideal seria fazer com que a totalidade desses recursos fosse coordenada de forma harmônica, sob a égide de uma regulação única de saúde, evitando duplicações e favorecendo o melhor uso dos recursos.

O pagamento por performance é um dos meios para corrigir os custos elevados da saúde

O Brasil gasta pouco ou gasta mal com saúde?

Comparado a 29 países latino-americanos, o Brasil está na 8ª posição dos gastos totais per capita, atrás de cuba, Bahamas, Trinidad e Tobago, Uruguai, chile, Panamá e costa rica. Mas cai para a 11ª colocação se conside- rados apenas os gastos públicos, que foram de US$ 607 por habitante em 2014. colômbia, Argentina e Panamá ficam à frente do Brasil nesse quesito. Independente- mente das cifras, o importante é saber o que está sendo comprado com o dinheiro e quais resultados esse gasto está trazendo. O Brasil melhorou nos últimos anos em relação a alguns indicadores básicos de saúde, mas não avançou muito no que se refere aos gastos públicos.

A crise econômica bateu forte nas operadoras de planos de saúde. só no último ano, o número de beneficiários perdidos chegou a quase 1,5 milhão. Como se reverte esse quadro?

É fundamental que as medidas macroeconômicas ado- tadas pelo governo acelerem a retomada do crescimento e, com isso, aumentem a capacidade das empresas de contratar planos para seus empregados. Também consi- dero importante que as operadoras se reestruturem para oferecer planos mais eficientes na cobertura e nas ações de promoção e prevenção. Poderiam ser planos mais baratos. E me parece crucial a reforma que transformaria a saúde suplementar em complementar.

neste momento, um grupo do Ministério da saúde estuda a criação de um plano de saúde acessível, ou “popular”, com custos menores. o senhor considera essa ideia viável?

considero. Não se trata de criar um plano mais barato dei- xando de fora a cobertura deste ou daquele procedimento, mas que seja um plano menos sofisticado. Sem hotelaria exclusiva em quartos de hospital, por exemplo. O plano acessível compartilharia com os usuários a responsabili- dade pela prevenção e pelo cuidado com a própria saúde, evitando, assim, custos crescentes com internação ou uso de estruturas hospitalares caras e complexas. Os planos de saúde deverão investir mais em atenção primária, promo- ção e prevenção. Algumas experiências brasileiras, como a de certas operadoras na utilização do Modelo de Atenção Integral de Saúde, têm alcançado excelentes resultados [leia mais na reportagem da pág. 19].

Faltam indicadores de qualidade à saúde brasileira?

O Brasil carece de qualidade em saúde. Pouquíssimos esta- belecimentos de saúde são acreditados. Em março de 2016, a ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar] divulgou a lista de hospitais brasileiros com acreditação máxima. Dos mais de 6 mil hospitais existentes no país, apenas 131 atingem esse critério pelo conjunto das entidades de acre- ditação. considerando só os hospitais que prestam serviços ao SUS, a situação é ainda pior. Se o governo determinasse que todos eles tivessem de cumprir normas de qualidade, em conformidade com os critérios das acreditadoras, mais de 90% fechariam as portas.

O senhor é um entusiasta do pagamento por performance como modelo de remuneração. por quê?

O pagamento por performance tem por objetivo melho- rar os resultados e a qualidade de processos que envol- vem a relação entre financiamento e prestação de servi- ços. com ele, cria-se uma cadeia em que a remuneração de todo mundo é baseada nos resultados alcançados. O SUS teria muito a ganhar se todos os contratos de es- tabelecimentos públicos ou privados com as secretarias de saúde fossem baseados em performance. O sistema ficaria mais eficiente. Seus usuários, mais satisfeitos. E o governo passaria de vilão a herói, supervisionando e avaliando desempenho segundo metas estabelecidas. Além do mais, entendo que pagamento por performance é um dos meios para corrigir os custos elevados da saúde. Muitos países estão avançando nessa direção. O problema é enfrentar o corporativismo das categorias profissionais e dos gestores de hospitais, que preferem gozar da estabilidade de seus respectivos empregos e contratos sem avaliação de resultados.

Está em curso no sTF [supremo Tribunal Federal] o julgamento que decidirá sobre a obrigatoriedade ou não do fornecimento de medicamentos de alto custo e sem registro na anvisa [agência nacional de Vigilância sanitária]. Qual é sua posição?

Sou contrário ao fornecimento. Mas creio que o Brasil precisa criar uma base mais ampla e sólida para o registro de procedimentos, remédios, equipamentos e terapias que possam melhorar a situação dos pacientes. A Anvisa tinha, até a década passada, a responsabilidade de aprovar novos medicamentos ou procedimentos, mas reclamações sobre a morosidade dos processos eram frequentes. Em 2006, a tarefa passou a ser feita pela citec [Comissão de Incorpo- ração de Tecnologia], inicialmente ligada à Secretaria de Atenção à Saúde. Um pouco mais tarde, em 2008, esse órgão foi transferido para a Secretaria de ciência, Tecno- logia e Insumos Estratégicos. Até que, em 2011, foi criada a conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecno- logias] para substituí-lo. Mesmo com esses avanços, o país ainda não tem massa crítica para desenvolver testes e aná- lises de custo associado à efetividade clínica em saúde. Nos próximos anos, o Brasil precisa avançar nesse campo.

Marcações: