Richard Pae Kim explica os desafios da judicialização na saúde e as ações que o CNJ realiza para que as decisões judiciais sejam qualificadas.
Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça e Supervisor do Fonajus – Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (CNJ), Richard Pae Kim conversou com a Visão Saúde sobre a controversa questão que envolve a judicialização na área da saúde pública e privada. Atualmente, cerca de 523 mil ações abordando temas de saúde tramitam no Judiciário brasileiro. A demanda cresceu 123% em 10 anos e entre as principais reivindicações estão o uso de medicamentos e a garantia de acesso à Unidade de Te- rapia Intensiva (UTI). Com a aprovação da Lei nº 14.454/2022 no ano passado, no Congresso Nacional, esse cenário tende a ganhar ainda mais repercussão, em sua opinião.
Pae Kim, que também é professor do Curso de Mestrado em Direito Médico da UNISA e Editor-Chefe da Revista Internacional de Direito da Saúde Comparado (Comparative Health Law Journal), entende a judicialização como uma questão de acessibilidade, que precisa ser tratada com seriedade e embasada por evidências científicas e legislação. Entre as ações do CNJ que contribuem para que esses requisitos sejam atendidos estão a criação do NatJus e do e-NatJus, que são Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário, formados por profissionais da saúde que de- vem elaborar, quando solicitados, notas técnicas sobre medicamentos, procedimentos e produ- tos, para embasar os magistrados em suas decisões. Esses documentos ficam disponibilizados em uma plataforma digital. Atualmente, há mais de 100 mil Notas Técnicas e 81 Pareceres publicados e que podem ser utilizados pelos magistrados, inclusive em casos análogos. “Os(as) magistrados(as) têm descoberto os benefícios de utilizarem as informações técnicas e, atual- mente, em alguns tribunais, cerca de 85% das decisões em saúde pública já são fundamentadas com informações técnicas. Em outros, os comitês de saúde têm trabalhado para disseminar a utilização das ferramentas”, conta Pae Kim. Confira a entrevista completa.
VISÃO SAÚDE – Qual sua visão sobre a judicialização da saúde no Brasil?
RICHARD PAE KIM – A judicialização possibilita a concretiza- ção do direito à saúde por intermédio do Poder Judiciário quando o SUS ou o prestador do serviço de saúde privado descumpre suas obrigações constitucionais ou legais. Se- gundo dados do CNJ, em média, 120 mil novos casos rela- cionados ao direito à saúde ingressam todo ano na Justiça, sendo a metade deles relativos ao acesso a medicamentos. Por isso, o Judiciário deve estar preparado para decidir os casos concretos com qualidade, celeridade e equidade, sempre baseado em evidências científicas e na legislação de regência.
O que causa esse problema?
A judicialização não é um problema. Propor uma ação cuida-se de exercício legítimo de qualquer cidadão de acesso à Justiça. A gestão adequada da judicialização da saúde, por isso, é dever dos tribunais estaduais e federais. Para cuidar adequadamente dessa pauta é que foi criado o FONAJUS (anteriormente denominado de Fórum da Saúde – CNJ) e os Comitês Estaduais e Distrital da Saú- de, que dialogam permanentemente sobre os problemas que causam a judicialização da saúde em cada unidade da federação e que buscam dar o atendimento adequado a essas situações. Os comitês são coordenados pelas justiças estadual e federal, havendo um rodízio a cada dois anos, sempre que possível. O fórum, assim como os comitês são compostos de representantes do Sistema de Justiça (Judi- ciário, Ministério Público, advocacias pública e privada e procuradorias), do Sistema de Saúde e também da so- ciedade civil. Num ambiente dialógico e plural, busca-se identificar os problemas e criar estratégias jurídicas e po- líticas para dar melhor desenlace às demandas e buscar formas alternativas de solução dos conflitos, seja na fase processual ou pré-processual.
A nossa primeira preocupação é que as decisões judiciais sejam qualificadas.
Quais ações do CNJ buscam a redução da judicialização?
A nossa primeira preocupação é que as decisões judiciais sejam qualificadas. Para isso, foi criado um sistema que possibilite dar um apoio técnico, científico, aos magistra- dos brasileiros. Não há dúvida de que a maioria dos(as) jul- gadores(as) não têm conhecimento técnico sobre todas as áreas do conhecimento, em especial, a da saúde. Por isso, os tribunais, por meio de parcerias com hospitais de exce- lência e profissionais da área de saúde, possuem os seus respectivos Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NatJus), grupos que ofertam subsídios técnicos às juízas e juízes que solicitam notas técnicas e pareceres que con- tribuirão para a tomada de decisão baseada em evidências médicas, em especial, quando há pedido de tutela liminar.
Em segundo lugar, acreditamos ainda que a utilização de dados precisos sobre a judicialização da saúde em cada es- tado, associada à prática de um diálogo qualificado com os parceiros da Justiça e os gestores da saúde pública e su- plementar podem contribuir para evitar novas demandas. O estabelecimento de fluxos de cumprimento de decisões judiciais e fixação de estratégicas para dar melhor atendi- mento à população, o que evita a judicialização são, sem dúvida, caminhos democráticos para uma gestão da justiça e da saúde da população. Todos ganham com isso.
Por fim, o tratamento adequado das lides só será completo com a utilização das técnicas de autocomposição desenha- das pela mediação e conciliação, que quando executadas com eficiência e rapidez, contribuem para reduzir a judi- cialização da saúde pública e suplementar.
Dentre as ações, qual se destaca e por quê?
Penso que a função dos NatJus dos Estados e do DF e do NatJus Nacional (inserido no sistema e-NatJus do CNJ) tem sido essencial para apoiar todos os juízes brasileiros com in- formações técnicas e baseadas em evidências científicas. Por isso estamos investindo muito nessas ferramentas.
Existem dados e números que garantem e comprovam sua eficácia? No sistema e-NatJus, por meio da pesquisa pública, é pos- sível verificar as orientações técnicas que têm sido produzidas pelos NatJus dos Estados e do DF e pelo NatJus Nacional. Como dito, o nosso objetivo é qualificar as de- cisões judiciais, munindo o(a) julgador(a) com informa- ções sobre a eficácia dos medicamentos e procedimentos no caso concreto, seus custos, e outras que foram indica- das pela autoridade judicial. Os tribunais, por intermédio de seus comitês de saúde, têm incentivado os magistrados que acessem as notas técnicas. Digo isso porque, respei- tando o princípio do livre convencimento do magistrado na instrução processual e para a prolação de sua decisão, não existe qualquer obrigatoriedade ao juiz para acessar as notas técnicas. No entanto, diante da qualidade dos trabalhos técnicos, que tem auxiliado os juízes a decidi- rem com mais informações, as notas técnicas já são utili- zadas, em alguns estados, em cerca de 85% das decisões judiciais relacionadas às demandas de saúde pública, conforme levantamento realizado neste ano de 2023.
Há melhorias mapeadas para 2023? Estamos trabalhando em adaptações tecnológicas para a integração automática do banco nacional de notas técnicas e pareceres no Processo Judicial Eletrônico (PJe) e nos demais sistemas de processo eletrônicos utilizados pelos tribunais, por meio da Plataforma Digital do Poder Judiciário. Houve também uma atualização da ferramen- ta de pesquisa da base de dados da plataforma e-Natjus, que agora possibilita uma melhor filtragem dos dados. Agora é possível acessar notas técnicas por medicamento, procedimento ou produto, além de outras especificida- des. Ainda estamos trabalhando na construção de um fluxo de cumprimento de decisões judiciais no âmbito das demandas de saúde pública propostas contra a União, que está sendo objeto de diálogos interinstitucionais, e esperamos chegar a um bom resultado até o final deste ano de 2023, com a apresentação de uma normativa que garanta mais eficiência no cumprimento não só de limi- nares, mas também de decisões definitivas em prol dos jurisdicionados.
Há algo importante a ser mencionado?
Como Supervisor e Coordenador do FONAJUS, tenho fomentado encontros com os Comitês estaduais de Saúde para conhecermos mais de perto os trabalhos que vêm sendo realizados nos estados, levantado as boas práticas e conhecido as dificuldades dos comitês e da saúde públi- ca. Portanto, estamos mapeando as melhores soluções e identificando cada um dos curtos-circuitos, com o objeti- vo de termos, ainda neste ano, a Política Judiciária de Re- solução Adequada das Demandas de Assistência à Saúde, que está sendo construída no âmbito do Fonajus e que será encaminhado, com um plano nacional, ao Plenário do CNJ para a sua aprovação. A definição dessa políti- ca nacional, tenho absoluta certeza, elevará a eficiência das ações do Judiciário, e atenderá às necessidades dos sistemas de gestão da saúde pública e da suplementar e garantirá os direitos à saúde dos cidadãos brasileiros que buscam o Judiciário.