Especialista no uso de dados na saúde fala sobre o papel de cada elo do sistema no fomento a essa atividade
A transição digital ocorre em ritmos próprios de cada setor da economia. Na saúde, o uso estruturado de dados é uma das áreas que promete mais benefícios no cuidado aos pacientes e na gestão de hospitais, laboratórios, operadoras e do SUS. No Brasil, porém, há desafios de ordem cultural e financeira para que isso se torne uma realidade disseminada no sistema. Para falar sobre o tema, convidamos uma das profissionais que participam ativamente desse projeto no país. Vanessa Teich, Superintendente de Economia da Saúde no Hospital Albert Einstein, vive esses desafios diariamente e acredita que chegou a hora de os diferentes elos da cadeia da saúde se unirem para formar um grande projeto nacional de coleta e análise de dados. Incluindo as pessoas comuns, que, segundo ela, vão poder escolher seus médicos e unidades de atendimento com base em indicadores públicos de qualidade e segurança.
VISÃO SAÚDE – Como o uso de dados pode transformar a saúde e o cuidado assistencial?
VANESSA TEICH – O uso de dados pode ajudar a direcionar os esforços para onde vamos ser mais efetivos. É muito comum que na saúde a gente identifique um problema e faça hipó- teses para como resolvê-lo. Mas a gente normalmente não usa dados pra tomar as decisões. Por exemplo: sabemos que a principal causa de mortalidade no Brasil, há pelo menos dez anos, são as doenças cardiovasculares. A gente usa esse dado pra mudar a política de saúde pública? Não, não usa- mos. O que poderíamos fazer? Onde está o problema? Aí começa um processo de investigação, que é a ideia de pensar como cientista o tempo todo, para resolver um problema. Será que fazemos menos exames do que poderíamos? Aí já pode estar uma deficiência. Quantas pessoas estão retirando medicação no SUS pra essas doenças? Temos perda de ade- são ao tratamento ao longo do tempo? Então você começa a usar os dados pra responder às suas hipóteses. Porque se você não usa o dado pra isso, não consegue testar suas soluções. Então, os dados ajudam a direcionar estratégias. Isso ficou muito claro na pandemia, pois a gente não sabia quantos leitos de UTI tínhamos no país, quantos médicos intensivis- tas. Esqueceram dos medicamentos para uso da ventilação mecânica e dos EPIs [equipamentos de proteção individual]. No fim das contas, é tanto problema para resolver ao mesmo tempo que se a gente não tiver dado pra direcionar os esfor- ços a gente se perde e não resolve nada.
Quais são os benefícios do uso de dados para os pacientes?
Os dados dão um poder para o paciente escolher onde ele vai ser atendido dentro das opções que ele tem. Chega a ser assustador quão pouca informação a gente tem de um hospital quando vai ser internado. As pessoas assumem que o risco é zero, e não é. Então, imagina se eu puder esco- lher onde serei tratado com base em dados históricos? Eu queria isso. Agora, por exemplo, a ANS [Agência Nacio- nal de Saúde Suplementar] é obrigada a fornecer dados de parto normal. Quando eu fiquei grávida eu queria fazer parto normal e muita gente me falava que na hora o mé- dico havia conduzido para a cesárea. Por isso, eu queria saber a taxa de parto vaginal dos médicos, que é a melhor evidência de que aquele médico é pró parto normal. Então, deveríamos começar a abrir para a sociedade os dados dos hospitais. Meu sonho é que o paciente cobre esses dados, que na hora de uma empresa escolher o plano de saúde, que ela olhe não só preço mas também indicadores dos hospitais que fazem parte dos planos. Para os pacientes, co- nhecer os dados é fundamental.
Que tipo de dado pode ser usado pelos gestores de saúde?
Primeiro são os indicadores de segurança. Se a gente olhar para as taxas de infecção relacionadas à assistência à saúde, tem indicadores relacionados a eventos evitáveis dentro da assistência hospitalar, por exemplo, chamados eventos ad- versos, como erros de medicação e quedas. O desafio aqui é que são eventos notificados. O hospital tem de ter uma cultura de segurança que estimule a notificação desses eventos sem punição. A gente precisa cobrar isso dos hospi- tais. Porque se não a gente corre o risco de olhar muito pro lado financeiro da operação saúde e não cobrar dados de qualidade e segurança. Esses são indicadores fundamen- tais. Existem também alguns indicadores relacionados à readmissão hospitalar, que é algo que os gestores sempre buscam diminuir, e a gente tem indicadores de uso da es- trutura hospitalar, como tempo de permanência dos pa- cientes, para o melhor uso da estrutura. Esses são indicado- res mais gerais. Depois, a gente vai mais para indicadores de adesão a protocolos clínicos.
Esses dados já não são acompanhados por gestores de hospitais e operadoras de planos de saúde?
Cada hospital tem seu dado e ele pode comparar com um benchmark, por exemplo, com os dados da média dos hos- pitais da Anahp [Associação Nacional dos Hospitais Priva- dos]. Mas se eu quero me comparar com um hospital espe- cífico, eu só vou conseguir fazer isso se esse outro hospital divulgar no site dele. E mesmo as operadoras, normalmen- te têm os dados dos seus beneficiários. Mas desconheço uma plataforma em que as operadoras entrem e vejam um dado específico de determinado hospital. Não tem algo estruturado com esse nível de detalhe. Mas é interessante que está começando um movimento de as operadoras pe- direm esses dados para os hospitais. Então, acho que está acontecendo uma mudança importante no momento atual que é essa virada de chave.
Como os dados podem ajudar as operadoras na gestão da carteira de beneficiários?
O primeiro ponto é conhecer melhor o beneficiário. Existe um questionário de saúde que é aplicado na admissão dos beneficiários, com informação sobre doenças preexisten- tes, basicamente, perfil epidemiológico, mas a partir do momento em que esse beneficiário entra na carteira o ideal é que a operadora obtenha novas informações ao longo do tempo. Nós temos, por exemplo, um esforço aqui no Brasil pra diminuir a taxa de cesáreas, mas em que momento a operadora fica sabendo que uma benefi- ciária está gestante? Muitas vezes é quando ela vai para o parto. Às vezes, quando faz um procedimento pré-natal. Mas normalmente a operadora vai ficar sabendo algumas semanas depois do início do pré-natal. Aí tem um papel importante da empresa [empregadora do beneficiário], de notificar para a operadora quando uma colaboradora está gestante, para que ela entre no programa de acompanha- mento. A operadora poderia fazer essa gestão de forma mais ativa, estimular as mulheres a fazerem os exames necessários. Na gestão de pacientes crônicos, as operado- ras já fazem isso, de acompanhar os pacientes de maneira mais próxima pra garantir que eles não tenham complica- ções. Usam informações sobre perfil do paciente e trata- mentos, pra tentar chegar num desfecho mais favorável e também evitar procedimento de alto custo. Outro exem- plo, tem estudos que mostram que é custo-efetivo moni- torar a adesão a medicamentos. Então, dentro do esforço das operadoras em prover atenção primária, esses dados sobre adesão a medicamentos poderiam ajudar a ver se esses pacientes estão com cuidado adequado. Imagine que eu tenho o perfil da minha carteira, a informação dos diagnósticos que os indivíduos tiveram dentro da minha operadora, protocolos que indicam o que deveria ser feito e depois eu meço o desfecho. Essas seriam as informa- ções que eu escolheria pra fazer a gestão de uma carteira.
E também tem a questão de os dados ajudarem a direcionar investimentos para, por exemplo, prevenção de uma doença específica.
Sim, com certeza. Dados podem ser usados para identi- ficar onde precisa de mais investimentos, onde está one- rando mais o sistema, onde está a maior mortalidade na minha carteira. Será que o cuidado desse paciente com esse perfil não está sendo adequado? Será que eu tenho de agir antes, pra evitar esses casos complexos? Os dados relacionados ao ambiente hospitalar poderiam ser usados com muito mais efetividade, toda a parte da segurança hospitalar e qualidade. Muitas vezes isso não aparece para as operadoras, mas se um paciente é internado e tem evento adverso, esse paciente tende a custar mais caro e no modelo de fee for service esse custo é pago pela ope- radora. Então, quando você tem um hospital com menos evento adverso, menos infecção, isso representa melhor desfecho e menor custo para o sistema.
Os dados relacionados ao ambiente hospitalar poderiam ser usados com muito mais efetividade. Se um paciente é internado e tem evento adverso, esse paciente tende a custar mais caro, e no modelo de fee for service esse custo é pago pela operadora.
Você citou várias possibilidades de coleta e uso de dados que ainda não são feitos de maneira estruturada. Isso acontece porque requer investimento alto ou as operadoras não estão devidamente cientes dos benefícios do uso estruturado de dados?
Faltam incentivos para disseminar isso na cadeia. Um hospital, por exemplo, tem de investir em um sistema de coleta de dados, para ter essas informações, e ele não é remunerado por isso, nem por ter maior qualidade. Por outro lado, as operadoras não conseguem calcular sozinhas algumas métricas relacionadas a adesão a pro- tocolos, por exemplo. O hospital tem de medir. E existe ainda uma cultura muito punitiva no Brasil quando fa- lamos de indicadores de qualidade e segurança. Exis- te muito receio de abrir esses dados, se vai ter algum processo, punição… isso desestimula os profissionais de saúde a notificarem os eventos. E quando os eventos não são notificados isso não melhora o processo e os eventos provavelmente se repetirão.