O compartilhamento de riscos é uma das estratégias que os países têm utilizado para fazer o pagamento de produtos de terapias gênicas
Com vasta experiência na área de registro de medicamentos, Daniela Marreco Cerqueira foi nomeada a secretária-executiva da Câmara de Regulamentação do Mercado de Medicamentos (CMED), em 2023. Atualmente, ela tem como um dos desafios a atualização do arcabouço normativo da CMED, que data de 2004. “Esse é um dos nossos grandes desafios. Outro grande desafio é conseguirmos, nesse cenário, em que as terapias medicamentosas estão cada vez mais caras e os produtos de terapia gênica custam na casa de milhões, equilibrarmos a precificação desses produtos para que sejam acessíveis à população, de forma que o sistema de saúde pública e a saúde suplementar consigam pagar por eles”.
Daniela ingressou na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2006, tendo passado por diferentes áreas. “A maior parte da minha experiência na Anvisa fiquei na parte de registro de produtos biológicos, inclusive fui gerente da área e construí boa parte do arcabouço regulatório para registro de produtos biológicos e biossimilares no Brasil”, conta Daniela, que também atuou junto à diretoria da Anvisa e na gerência geral de medicamentos.
À Revista Visão Saúde ela falou sobre o papel da CMED e seus desafios.
Visão Saúde – Como foi assumir essa Secretaria-Executiva?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA
Como foi assumir essa Secretaria-Executiva
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – Foi um grande desafio, pois ela trabalha de forma bastante diferente do restante da Anvisa. Por mais que eu tenha passado por diversas áreas da Agência, a Secretaria- Executiva, por atuar dentro de um órgão interministerial, um colegiado composto por cinco ministérios diferentes, tem um trabalho muito particular porque não trabalhamos para a Anvisa, mas sim para esse órgão colegiado. É outro esquema e outros processos de trabalho. Na CMED realizamos etapas de trabalho relacionadas não só a um procedimento de precificação de medicamento, que seria parecido com o processo de registro, mas também apuramos infrações ao mercado de medicamentos, que é um outro tipo de trabalho. Quando cheguei à Secretaria-Executiva percebi a importância que a CMED tem no acesso aos medicamentos. Quando estamos na Anvisa, na área de registro, temos o entendimento de que o registro é a última etapa para o medicamento ser disponibilizado para a população, mas ainda tem a etapa de preço, que é extremamente crítica quando pensamos como equilibrar o preço de um medicamento que seja justo para a indústria farmacêutica, que precisa ter lucro e fazer investimentos no País, e acessível para a população. Toda essa questão do acesso na Secretaria-Executiva e na CMED como um todo é muito proeminente.
Qual é o papel da CMED?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – É permitir a existência de um mercado farmacêutico saudável no País. Quando digo saudável é que tenha regulação e monitoramento dos preços. Historicamente, quando observamos os preços de medicamentos no País antes da CMED, em 2003, e após, vemos que existia muita variação nos preços dos medicamentos. Hoje a variação de preço de medicamentos tende a ser muito mais estável, normalmente acompanhando os índices de inflação do País. Isso mostra que a regulação atingiu o objetivo dela, que é trazer uma estabilidade ao mercado farmacêutico nacional.
Por que o preço de incorporação difere na saúde pública e na saúde suplementar?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – São regras de negociação. O que temos no âmbito da regulação da CMED é a definição de preço teto. Definimos o preço teto em três limites máximos: o preço fábrica, o preço praticado pelos atacadistas, distribuidores e hospitais; e o preço máximo ao consumidor, que é o preço do varejo, a ser praticado pelas farmácias e drogarias. Temos o PMVG, que é o Preço Máximo de Venda ao Governo. Ele traz um desconto, que chamamos de Coeficiente de Adequação de Preço (CAP). Hoje esse desconto é de 21,53% e é aplicado em cima do preço fábrica. Para as compras públicas, e para qualquer medicamento fornecido em determinação a uma ordem judicial, é preciso aplicar o CAP para ter desconto. Os medicamentos de compras públicas têm preço com desconto e no âmbito da incorporação, seja no serviço público ou na saúde suplementar, depende de negociação, desde que seja praticado o preço teto, PMVG ou preço-fábrica, a negociação ocorre entre o ente, seja o plano de saúde ou a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde), e o fornecedor do medicamento.
Há algum tipo de fiscalização para que os medicamentos não atinjam valores elevados?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – Sim, temos regras. Inclusive tem uma resolução da CMED que traz as regras de precificação dos medicamentos, pois todos precisam ser precificados de acordo com as regras estabelecidas. Usamos também o custo de tratamento, em que comparo a nova tecnologia que estou precificando com a que já tenho disponível no País, de modo que possa ter um preço maior desde que a nova tecnologia demonstre ganho em relação ao que já tenho. Se ela for equiparável, o preço do novo medicamento não pode ser superior ao que já existe no País. Esses são os critérios que utilizamos para evitar preços muito altos dos medicamentos que entram no mercado.
Essas regras têm sido respeitadas?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – Quando nós definimos o preço máximo do medicamento, que é publicado na lista de preços da CMED, esse é o preço teto que pode ser praticado. Recebemos diversas denúncias em relação às práticas de sobrepreço no mercado, seja pelo fabricante, distribuidor ou pelas farmácias. Todas essas denúncias são avaliadas para ver se realmente ocorreu alguma infração às regras do mercado de medicamentos e, em caso de infração, as empresas são penalizadas. Elas precisam pagar multas que são estabelecidas de acordo com o preço do medicamento, o porte da empresa e a quantidade ofertada ou comercializada.
Quanto à incorporação acelerada de tecnologias, como equilibrar essa equação para que os planos de saúde mantenham a sustentabilidade e ofereçam as terapias ao beneficiário?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – Isso vai além da CMED. Essa questão de como equilibrar as compras de medicamentos envolve a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a Conitec, no âmbito do Ministério da Saúde. Não é algo exclusivo do Brasil. Outros países têm adotado algumas estratégias, como por exemplo, o compartilhamento de riscos. Isso é feito no momento da incorporação, em que é negociado com a empresa fornecedora daquele medicamento que ela vai receber o pagamento por ele na medida em que vai tendo o resultado dos pacientes. A cada ano que o paciente demonstra uma boa sobrevida, a empresa vai receber. Essa é uma das estratégias que os países têm utilizado para fazer o pagamento de produtos de terapias gênicas.
Isso pode dar certo no Brasil?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – Sim, já existe. O zolgensma foi incorporado por essa ferramenta de compartilhamento de riscos. É um piloto que precisa ser avaliado em relação aos prós e contras, mas acho que é sim uma das possibilidades que o Brasil precisa estudar para implementar em mais casos.
A CMED completa 21 anos em 2024. O que houve de melhorias?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – A regulação econômica do mercado farmacêutico beneficia a sociedade como um todo: o cidadão que compra seu medicamento na farmácia, os planos de saúde, que também precisam custear o fornecimento de medicamentos pelos hospitais, inclusive a CMED também tem regras estabelecendo como tem de ser a cobrança dos medicamentos pelos hospitais. O cidadão comum tem de participar do monitoramento do mercado enviando denúncias sempre que
encontrar sobrepreços de medicamentos para apurarmos e realizar as investigações necessárias. Recentemente lançamos um painel para consulta de preços de medicamentos de forma muito mais amigável do que o PDF que costumávamos divulgar anteriormente. É uma ferramenta que o cidadão consegue, de forma mais fácil, consultar o preço teto do medicamento que ele vai adquirir. Se ele verificar qualquer sobrepreço, pode encaminhar a denúncia para nós.
As denúncias mais recebidas são dos planos de saúde ou é algo mais realizado pelo consumidor?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – Recebemos muitas denúncias de consumidores, de órgãos públicos, de compras de medicamentos que realizam pregões e recebem ofertas de medicamentos com preço acima do preço teto. Também recebemos de planos de saúde, mas a maioria é de secretarias de saúde e órgãos de saúde que compram medicamentos. Muitas vezes o plano de saúde tem ali agregado no valor o serviço que os hospitais incluem na norma da CMED. O que a norma CMED diz é que os hospitais não podem oferecer medicamento pelo preço máximo ao consumidor porque eles não são dispensários de medicamentos. Os hospitais devem praticar o custo fábrica e se o plano verificar dentro da nota fiscal que o hospital praticou um preço acima do preço fábrica, ele pode encaminhar a denúncia. Já recebemos muitas vezes denúncias de plano de saúde em relação a medicamentos fornecidos por ordem judicial. O juiz determina que o plano de saúde forneça um medicamento de alto custo. Nesses casos, sempre que é demanda judicial, precisa ser aplicado o desconto CAP. Mas muitas vezes o plano de saúde tem dificuldade de conseguir comprar o medicamento com a aplicação desse desconto. Então, eles fazem a compra, porque precisam cumprir a determinação judicial, e depois nos encaminham a denúncia porque não houve cumprimento da norma da CMED.
Nestes casos, demora-se quanto tempo para ter uma devolutiva?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – Atualmente estamos apurando denúncias de 2021. No período de pandemia as denúncias extrapolaram todos os limites que estávamos acostumados a trabalhar. Estamos dando retorno no prazo de três anos. Por mais que a gente queira reduzir, hoje são três anos para começarmos a analisar as denúncias recebidas, exceto denúncias encaminhadas pelo Ministério Público e Ministério da Saúde, que são tratadas como prioridades.
Há algum tipo de planejamento (contratação de pessoas ou aquisição de tecnologias) para conseguir avaliar mais rápido?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – Temos todas essas iniciativas. Estamos com um plano de ação em relação a recursos humanos e recursos tecnológicos para que consigamos dar mais celeridade a essas denúncias. Nossa meta é chegar a no máximo um ano de defasagem.
Hoje, qual é o maior desafio da CMED?
DANIELA MARRECO CERQUEIRA – Temos muitos desafios. O primeiro deles é em relação ao arcabouço regulatório da CMED. Nossa norma, que define os critérios de precificação de medicamentos, é uma resolução 2/2004. Era um momento em que nosso mercado farmacêutico era formado muito por medicamentos sintéticos, em que a indústria nacional estava desenvolvendo medicamentos genéricos, então ela já não traz critérios que possam ser os mais adequados para precificar, por exemplo, um produto de terapia gênica. Precisamos revisar essa resolução para que ela esteja mais adequada ao cenário farmacêutico atual. Além dessa resolução, temos um planejamento estratégico do Comitê Técnico Executivo da CMED. São sete temas que se encontram em processo de revisão. Pretendemos atualizar o arcabouço normativo da CMED. Esse é um dos nossos grandes desafios. Outro grande desafio é conseguirmos, nesse cenário, em que as terapias medicamentosas estão cada vez mais caras e os produtos de terapia gênica custam na casa de milhões, equilibrarmos a precificação desses produtos para que sejam acessíveis à população, de forma que o sistema de saúde pública e a saúde suplementar consigam pagar por eles.