O setor da saúde no mundo todo, inclu- sive no Brasil, deve enfrentar nos pró- ximos anos muitos desafios que vêm com o envelhecimento da população.
No contexto dos cuidados com a saúde, esse envelhecimento populacional traz algumas preocupações porque aumenta a pressão sobre o sistema na medida em que doenças crônicas e doenças do fim da vida tendem a aumentar. Além disso, também vivemos um momen- to em que diagnósticos de transtorno do espectro autista, doenças autoimunes e de- generativas aumentaram.
Ao mesmo tempo, vivemos uma era de rá- pido avanço tecnológico. Novos medicamentos, exames e tratamentos surgem o tempo todo, ofe- recendo mais possibilidade de cuidados e prolon- gamento da qualidade de vida dos pacientes.
Quando juntamos esses cenários, apre- senta-se um grande desafio para a saúde su- plementar que é a incorporação de novas tec- nologias por um preço que não onere demais o sistema. Ao contrário do que acontece em outros setores, nos quais o avanço tecnológi- co tende a baratear, na saúde a propensão é aumentar os custos.
“Temos recursos finitos e as de- mandas estão se tornando infinitas”, diz Cassio Ide Alves, superintendente médico da Abramge.
É nesse contexto que todo o setor debate sobre o limiar de custo-efetividade, um pa- râmetro para definir preço de incorporação. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o limiar de incorporação é de um PIB per capita por ano. O PIB per capita de 2022 é de R$ 40 mil. Então, se- rão incorporadas tecnologias que tenham um valor de 1 PIB per capita por QALY (Quality-Adjusted Life-Years), que é um ano de vida conseguido com qualidade.
No Brasil, esse limiar existe apenas para o Sistema Único de Saúde (SUS). No âmbito da saúde suplementar, é um tema que vem sendo debatido há anos, mas ain- da sem consenso e repleto de desafios.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), inclusive, realizou, em agosto, o seminário “Parâmetros de Ava- liação Econômica no Processo de Atua- lização do Rol”, que discutiu questões relacionadas ao limiar e aos impactos econômicos na saúde suplementar da incorporação de novas tecnologias.
Segundo Alexandre Fioranelli, diretor de Normas e Habilitação dos Produtos (DIPRO) da ANS, ainda há muito a ser discutido para se chegar a um consen- so entre todos os agentes do sistema.
“O estabelecimento de limiar de custo-efetividade na saúde suplementar não pode prescindir de um de- bate amplo com a sociedade, considerando suas espe- cificidades e abrangência. A ANS iniciou os trabalhos de avaliação de impacto orçamentário a partir do Rol de 2021 e, com relação à questão do custo-efetividade, vem aprimorando suas análises principalmente a par- tir do rol contínuo, que foi implantado efetivamente em 2022. A equipe dialoga com os parceiros externos que elaboram a análise crítica das propostas e vem tra- zendo a cada dia novos elementos para apoiar a dis- cussão relativa ao custo-efetividade. Dados os curtos prazos de análise das tecnologias determinados pela legislação vigente, ainda não é possível falarmos em elaboração de modelos próprios de custo-efetividade da saúde suplementar pela ANS. Contudo, as análises das submissões vêm sendo aprimoradas e as informa- ções sistematizadas para proporcionar transparência aos resultados dos estudos analisados”, diz.
SEGUNDO A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE
(OMS), o limiar de incorporação é de um PIB per capita por ano. No Brasil, o PIB per capita de 2022 é de R$ 40 mil. São incorporadas tecnologias que tenham um valor de 1 PIB per capita por QALY (Quality-Adjusted Life-Years), que é um ano de vida conseguido com qualidade
COMO SE DISCUTE O QUE VAI SER INCORPORADO?
A ferramenta usada para a incorporação de novas tecnologias é a Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS), sustentada por três pilares fundamentais: se- gurança, eficácia clínica e custo-efetividade.
“Na saúde suplementar, no Brasil, discutimos segurança e eficiência, mas não discutimos preço de incorporação. É tudo preço CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) em valor cheio. Isso é um desperdício e utilização de recurso indevida. Não discutimos preço porque não temos o limiar de custo-efetividade”, avalia Alves.
O diretor da ANS explica que, no âmbito do SUS, o Ministério da Saúde pode discutir e negociar o pre ço porque é o único comprador. Já na saúde suple- mentar, são mais de 700 compradores, levando em conta o número de operadoras de saúde.
“No caso da ANS, além de não sermos pagador, o tipo de proposta de incorporação de tecnologias que recebemos é, na sua esmagadora maioria, de medi- camentos e procedimentos voltados para populações muito pequenas, ou seja, para agravos que podem ser considerados como raros e/ou relativos a tratamen- to de fim de vida, que são as exceções ao limiar do
SUS. Então, esse estabelecimento de limiar da saúde suplementar não pode prescindir de um debate amplo com a sociedade, considerando suas especificidades e abrangência desse assunto”.
Hoje, a agência tem ido atrás dos preços praticados pelo mercado que são encontrados na Troca de Infor- mação na Saúde Suplementar (TISS) e usado essa re- ferência em análise de sensibilidade, ou seja, quando é uma tecnologia que já está no mercado mas pode começar a ser utilizada para outro tipo de patologia.
Outro desafio da Agência na incorporação de no- vas tecnologias é o prazo. A ANS trabalha com uma demanda aberta e contínua e não pode fazer priori- zação. Quando surge o pedido de nova tecnologia, a avaliação precisa ser feita em seis meses, prorrogáveis por 90 dias. Se não cumprir esse prazo, a tecnologia é incorporada automaticamente. “É um trabalho hercúleo da equipe frente à responsabilidade e a necessidade de dar segurança para aqui- lo que a gente vai incorporar ou não”, diz Fioranelli.
O PROBLEMA DA INCORPORAÇÃO AUTOMÁTICA
Um dos grandes desafios da saúde suplementar é lidar com a incorporação automática ao rol de procedimentos de todas as tecnologias que são incorporadas no SUS.
“A diferença é brutal. A Lei 14.307, de 03/03/2022, modificou a forma como se incorporam medicamentos, que deu origem à RN 555, da ANS, que trata do rito de incorporação do rol. Ela diz que tudo que for aprovado no Conitec do SUS para incorporação assis- tencial tem de ser incorporado em 60 dias, sem nova discussão para a saúde suplementar. Até aqui muito adequado. Porém, ela diz também que não se aproveita nada do que se discutiu no SUS para a Saúde Suple- mentar. Quando se incorpora um medicamento, a ATS analisa essas evidências científicas de eficácia e segurança. No SUS, essa diretriz é dada pelo PCDT – Protocolo Clínico de Diretriz Terapêutica. Para a Saúde Suplementar não vem nem o PCDT. Acabamos utili- zando a bula que serve para registro sanitário como é feito no mundo inteiro”, relata Cassio Ide.
Outra questão que é impactada pela incorpora- ção automática é a capacidade das operadoras e dos prestadores de atenderem as demandas. Alexandre Fioranelli explica que, como o SUS é fonte pagadora e também prestador, concentra a decisão sobre qual o paciente que vai utilizar aquela tecnologia, em que hospital ou serviço de saúde. Quando incorporado na saúde suplementar, entram no jogo quase 700 opera- doras e 100 mil prestadores que atuam no País todo.
Fica difícil saber a capacidade instalada de todos os lugares, ou seja, não se sabe se todo território brasileiro tem condição de fazer utilização dessa tecnologia.
“A ANS tem assento na Conitec e nós temos enfatizado a importância de avaliar não só a questão econômica, mas também a disponibilidade das tec- nologias em todo o país. Esse aspecto é fundamental para garantir que a as- sistência será prestada”, acrescenta o diretor da ANS.
A IMPORTÂNCIA DO LIMIAR
A discussão sobre limiar de custo-efetividade na saúde suplementar sempre acaba pas- sando pela comparação com o que acontece no SUS, onde esse limiar já existe.
Para o advogado sanitarista e consul- tor em advocacy Tiago Farina, o limiar de custo-efetividade não tem funcionado bem no sistema público.
“O limiar foi pensado para tentar simplificar aquela tomada de decisão mais fácil. Coube no limiar, nem se entra em muita discussão. Não coube no limiar é preciso uma discussão mais profunda, é preciso estressar o sistema para garantir
que o paciente certo tenha acesso a tecnologia certa, na hora certa, na dose certa a um preço justo. Acho que isso não está acontecendo no SUS. Virou uma nota de corte e o sistema não está preparado para es- tressar esse debate”.
Uma das consequências disso é a judicialização da saúde, com muitos processos ativos para conseguir os tratamentos prescritos e desejados. Isso, além de ser desgastante tanto para pacientes como para as opera- doras de saúde, também impacta nos custos do sistema. “A judicialização e o ativismo legislativo a curto prazo parecem bons, mas a médio e longo prazo são terríveis. As pessoas precisam entender isso”, diz o superintendente médico da Abramge.
Para Farina, os problemas do setor de saúde são mais profundos. “Vivemos em um sistema de castas sani- tárias. Não podemos permitir que haja esse sistema de castas. Aquilo que pode salvar vidas tem que estar ga- rantido para todo mundo. Para isso acontecer tem que ter uma mudança completa na forma de encarar a ava- liação de tecnologias em saúde. Não vai ajudar a gente ficar definindo limiar para o SUS e limiar para a saúde suplementar. Também não acho que faz nenhum sentido a gente partir da premissa de que limiar é para fechar acesso. Limiar tem que ser para garantir preço justo”.
A IMPORTÂNCIA DOS DADOS E DA CONSCIENTIZAÇÃO
Estabelecer uma relação de custo-efetividade de tec- nologia exige dados. Alexandre Fioranelli diz que a agência analisou cerca de 36 mil estudos científicos em 11 meses no trabalho de avaliação de tecnologias. Porém, ainda faltam dados sobre o impacto dos tratamentos na vida real das pessoas.
“Custo-efetividade vamos começar a definir quando tiver protocolos de monitoramento de tecnologias no País. Só quando eu conseguir alinhar todos os agentes do setor – indústria, operadora, prestador, sociedade médicas – vou começar a ter realmente dados da vida real e poder dizer se a tecnologia foi custo-efetiva ou não”.
Além disso, também é preciso um tra- balho intenso de educação da sociedade. Muitas vezes, a pessoa ouve falar sobre uma nova tecnologia e já quer utilizar. Mas, antes, é preciso saber se ela é realmente boa. Porque nem toda nova tecno- logia é melhor do que sua antecessora.
O sistema de saúde em geral é complexo porque envolve muitos atores: médicos, pacientes, poder público, órgãos reguladores, indústria de medica- mentos, fabricantes de tecnologias etc. Alinhar todos os interesses e encontrar o ponto de convergência que traga equi- líbrio para o sistema é um dos grandes desafios do setor.