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A governança do reencontro

Charles Plummer morreu em 1927, com 76 anos, e possivelmente não imaginou que 95 anos depois o mundo corporativo se dedicaria a debater a governança como elemento fundamental da administração.

A Plummer, ganhador do Fellowship of British Academy, prêmio concedido a acadêmicos que se destacam nas ciências humanas e sociais, é reputado o fato de ser o primeiro teórico a falar sobre governança em uma dimensão mais próxima do que se conhece hoje.

O termo com significado contemporâneo foi publicado em The Governance of England, tradução de 1885 de um manuscrito latino do século XV, de autoria de John Fortescue. Plum- mer, historiador, foi o editor da publicação.

A história ajuda a entender a dificuldade de se definir um significado único para go- vernança e, consequentemente, de se apli- carem modelos operacionais de gestão que traduzam, com assertividade, a excelência da atividade.

Na origem, o livro de Sir Fortescue tam- bém é chamado de A diferença entre uma monarquia absoluta e uma monarquia limitada, o que oferece pistas sobre uma das ideias mais frequentes nesse assunto: os dife- rentes níveis de autonomia, tomada de deci- são e responsabilidades. Enfim, governar. O caráter ecumênico da palavra e sua escancarada transversalidade se encarrega- ram, nos últimos cem anos, de transpor as barreiras das monarquias para invadir os Es- tados democráticos e aportar nas empresas o que se convencionou chamar de governança corporativa.

Há pouca diferença entre os conceitos cunhados na origem, quando a atenção estava em estabelecer os limites da monarquia, e os atuais, que versam sobre os limites dos modelos de gestão das corporações. A repetição dos conceitos é proposital para instigar a reflexão sobre as dificuldades impostas a quem decide governar, Estados ou empresas, sob a égide das regras de eficiência, coerência e ética.

O caráter social das corporações dedicadas aos cuidados da saúde é um dos elementos dificultadores para o estabelecimento de padrões de governança. A confusão decorrente de conceitos viciados sobre o papel do Estado no segmento assistencial impõe aos líderes empresariais uma visão eclética pautada em um modelo operacional híbrido.

O método de John Fortescue, ao se funda- mentar no estudo comparado, ajuda os con- temporâneos a estabelecerem a pertinência e a relevância da governança corporativa, responsável pelo conjunto de regramentos que contribuem com os objetivos das em- presas, com o lucro dos acionistas e com o bem-estar dos colaboradores.

O caráter social das corporações dedica- das aos cuidados da saúde é um dos elemen- tos dificultadores para o estabelecimento de padrões de governança. A confusão decor- rente de conceitos viciados sobre o papel do Estado no segmento assistencial impõe aos líderes empresariais uma visão eclética pautada em um modelo operacional híbrido, ora como provedor de serviços essenciais, de vocação estatal, ora como gerador de rique- zas, de vocação privada. Reside nesse aspecto a dificuldade em implantar modelos de governança nas empresas dedicadas aos serviços de saúde. E é esse o ponto de partida para uma proposta de mudança nos modelos operacionais

corporativos. A adoção da governança do reencontro é imperativa pelas empresas do segmento da saúde porque incorpora, na sua essência e razão de existir, o fato de que a severa transformação imposta pela preca- riedade das relações provocada pela Covid 19 pode incentivar modelos de gestão que restabeleçam a integração dos tecidos so- ciais, privilegiem o fluxo das informações objetivas, respeitem as diferenças indivi- duais, contemplem as inovações tecnológi- cas e, sem falsos cognatos, resgatem os fun- damentos elementares das relações entre as empresas e os usuários dos serviços.

Esse, posso garantir, é o caminho mais eficiente para a sustentabilidade do ecossis- tema de saúde. Que a jornada é longa, não há dúvida. Que paradigmas deverão ser rompidos, é certo. A mudança de cultura nunca é fácil nem rápida, mas o retorno é recompensador.

Na Saúde Suplementar, um dos passos mais importantes foi dado pela Agência Nacional de Saúde (ANS), ao publicar a Resolução Normativa nº 443, em 2019, que dispõe sobre as práticas de governança corporativa, controles internos e gestão de riscos. Essa tríade é a base para o amadure- cimento da gestão, garantindo solidez e sus- tentabilidade no longo prazo. Mas não se engane. Não se trata apenas de políticas e processos internos, documentos e toda uma parafernália jurídica. É preciso ir muito além: as boas práticas devem estar in- seridas no DNA da empresa. São orgânicas, têm vida, devem ser ajustadas, alimentadas, reforçadas, por meio de treinamento, a todo momento. Afinal, mais do que qualquer coi- sa, se trata de uma mudança de cultura.

POR LUCAS MIGLIOLI
É SÓCIO FUNDADOR DA M3BS ADVOGADOS