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SUSTENTABILIDADEDEPENDE DADISCUSSÃO DO PREÇODE INCORPORAÇÃO

Diante das novas tecnologias e seu alto custo, não há como falar de acesso à saúde sem colocar na mesa de discussão o preço pago por elas

incorporar uma nova tecnologia ao sistema de saúde – seja um medicamento, um exame ou uma terapia – é um processo que exige extremo cuida­do e atenção porque, acima de tudo, há pessoas envolvidas, vidas que precisam de suporte.

Porém, não dá pra discutir esse tema sem colocar na pauta a sustentabilidade financeira da Saúde Su­plementar e do Sistema Único de Saúde (SUS), além do papel da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Vivemos um momento em que as novas tecnolo­gias em saúde surgem em grande quantidade, porém sempre são mais caras. E isso, claro, tem um impac­to orçamentário muito grande. Quando esse custo entra em contato com as distorções que ocorrem nos processos de incorporação no Brasil, a situação fica mais crítica e colabora para o momento atual de ex­tremo desafio para a sustentabilidade financeira da saúde suplementar.

“Não podemos discutir o acesso às inovações sem discutir o preço das incorporações. Os recursos são finitos e novas soluções e inovações surgem todos os dias. A saúde suplementar não tem um orçamento único, mas tem a capacidade de pagamento das famí­lias, do indivíduo e das empresas, que também têm um limite. Então, temos que pensar sempre em discu­tir o preço do acesso a essas inovações”, avalia Cassio Ide Alves, diretor técnico-médico da Associação Bra­sileira de Planos de Saúde (Abramge).

COMO É FEITA A PRECIFICA­ÇÃO DE MEDICAMENTOS NO BRASIL

Para entender um pouco os gargalos e distorções que acontecem nos processos de incorporação é preciso entender como se dá a precificação de medicamentos no Brasil, que é responsabilidade da Câma­ra de Regulação do Mercado de Medica­mentos (CMED).

Antes do preço é preciso ter o regis­tro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Normalmente, o re­gistro pleno de uma medicação é feito após estudos clínicos de fase 3, que dão uma certeza maior sobre eficácia e segu­rança. Mas, como a ciência evoluiu bas­tante nesses últimos anos, encontrando soluções para doenças raras e oncológi­cas em estágios mais avançados, há uma tendência mundial de aceitar o registro sanitário com pesquisa clínica de fase 2, na qual se tem certeza apenas da se­gurança da dose e da eficácia, ou seja, ainda há uma série de dúvidas sobre a segurança completa, efeito colateral e ação do medicamento em órgãos que não estão doentes entre outros.

Essa menor barreira regulatória é chamada de fast track e traz uma maior incerteza quanto aos benefícios e os riscos, porém o medicamento entra mais rápido no sistema.

A partir do momento que o medicamento recebe o registro sanitário, seja pelo processo completo ou pelo fast track, ele precisa ter um preço de registro para poder ser comercializado. Quem regula esse merca­do é a CMED, que define três tipos de preços: Preço Fábrica (valor máximo pelo qual as indústrias e distri­buidores podem vender medicamentos), Preço Máxi­mo ao Consumidor (limite de preço que o consumidor final deve pagar por um medicamento) e Preço Máxi­mo de Venda ao Governo (calculado a partir do Preço Fábrica com o coeficiente de adequação de preços).

Para estipular o preço de fábrica, a CMED leva em consideração uma cesta de nove países (even­tualmente dez países, se o país detentor da patente não for um desses nove): Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Inglaterra, Escócia, Itália, França e Japão. Ela vê nesses nove países qual tem o menor preço de registro e usa.

Mas existem meandros que precisam ser melhor entendidos. Usando como exemplo a Inglaterra, o National Institute for Health and Care Excellence (NICE), a agência de regulação britânica, analisa a tecnologia, inclusive o fast track, dá o registro sa­nitário e coloca um preço de registro. O Brasil olha para isso e usa esse preço de registro como referên­cia. Porém, esse preço de registro não é o preço de incorporação do medicamento pelo National Health Service (NHS), que é o sistema de saúde inglês. O NHS exige adequação de preço para que seja incor­porado ao seu sistema de saúde.

“Na verdade, nós não tínhamos que usar o pre­ço de registro. Tínhamos que usar o preço que foi incorporado no sistema de saúde. Só que não temos acesso a esse preço, que é feito com cláusulas de confidencialidade”, explica Alves.

“Não podemos discutir o acesso às inovações sem discutir o preço das incorporações. Os recursos são finitos e novas soluções e inovações surgem todos os dias. A saúde suplementar não tem um orçamento único, mas tem a capacidade de pagamento das famílias, do indivíduo e das empresas, que também têm um limite”

CASSIO IDE ALVES, diretor técnico-médico da Abramge.

Um exemplo é o medicamento Zolgensma, usado no tratamento de Atrofia Muscular Espinhal (AME). O preço de registro no NICE é de 1,1 milhão de libras e o de incorporação é de 200 mil libras. O preço má­ximo de venda ao Governo (PMVG) aqui no Brasil é de R$ 5,5 milhões. Só que o preço para a saúde suplementar é R$ 10 milhões.

“Se usássemos o preço de incorporação do NHS, pagaríamos cerca de R$ 1,2 milhão. Para onde vai o restante desse dinheiro? Vai aumentar o lucro da matriz e subsidiar o sistema de saúde de lá. Acabamos pagando desenvolvimento científico, trabalho científico lá na matriz com os nossos re­cursos daqui”, diz Alves.

Outra questão discutida nesse siste­ma de precificação é que existem seis categorias de medicamentos. Porém, en­quanto no registro sanitário houve uma adequação e uma permissibilidade para que existisse o fast track, a lei de precifi­cação não passou por nenhuma adequa­ção. Ela entrou em vigor em 2004, quan­do não existia nem metade das classes de drogas e inovações que temos hoje.

“Essa lei está extremamente defasada. Na época que foi proposto o preço máxi­mo ao consumidor era mais com o objeti­vo de proteger o cidadão. Só que a ciência evoluiu. Passaram-se 20 anos e a realidade é outra. Então, é muito difícil esses novos medicamentos conseguirem demonstrar ganho de eficácia e segurança com re­lação a algum comparador. E se ele não consegue se encaixar em nenhuma das seis categorias, acaba entrando em uma categoria que é chamada caso omisso, criado para uma exceção, só que a exce­ção hoje em dia já representa mais de 30% dos medicamentos que recebem registro sanitário”, explica o diretor da Abramge.

COMO FICA A INCORPORAÇÃO DE NOVAS TECNOLOGIAS

Falar de preço é fundamental para poder falar da incorporação de novos medicamentos e procedimentos, um dos temas mais discutidos dentro da saúde suplementar e também do SUS. A ANS é a responsável por fazer a recomendação de novas tecnologias que serão incorpo­radas na saúde suplementar, enquanto no SUS esse é o trabalho da Conitec.

A comissão foi criada em 2011 e tem por objetivo assessorar o Ministério da Saúde nas atribuições relativas à incor­poração, exclusão ou alteração de tecno­logias em saúde pelo SUS, bem como na constituição ou alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica.

 
“A Conitec olha, além dos parâmetros que já foram avaliados pela Anvisa, se aquela tecnologia tem efetividade e custo-efetividade. Funciona? É melhor do que o que há disponível no SUS? Se é melhor, será que compensa em termos de custos, tem uma boa relação de custo-efetividade? Normalmente, novas tecnologias têm um custo maior do que aquela já existente”

LUCIENE BONAN, diretora do Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde (DGTIS), parte integrante da Conitec

Pela lei, a análise deve ser baseada em evidências científicas, levando em consideração aspectos como eficácia, acurácia, efetividade e a segurança da tecnologia, além da avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em rela­ção às tecnologias já existentes.

“A Conitec olha, além dos parâmetros que já foram avaliados pela Anvisa, se aquela tecnologia tem efetividade e custo-efetividade. Funciona? É melhor do que o que há disponível no SUS? Se é melhor, será que compensa em termos de custos, tem uma boa relação de custo-efetividade? Nor­malmente, novas tecnologias têm um custo maior do que aquela já existente. Então, será que esse custo incremental vale a pena e vai trazer efici­ência para o sistema de saúde?”, explica Luciene Bonan, diretora do Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde (DGTIS), parte integrante da Conitec.

Essa avaliação da Conitec é muito importante para o sistema de saúde suplementar porque desde 2022 tudo que é incorporado no SUS tem que ser ofe­recido na saúde suplementar em, no máximo, 60 dias.

“O medicamento é incorporado no SUS depois de um estudo de eficácia, segurança, efetividade e da discussão de preço. Quando ele vem para a saúde suplementar, não chega com o preço que foi discutido lá, mas sim o preço CMED. Muitas ve­zes, esse preço é cinco ou seis vezes maior do que o preço que foi incorporado no SUS. Já se passaram 29 ciclos mensais e a Agência Nacional de Saúde Suplementar ainda não estipulou um limiar de cus­to-efetividade e nem faz discussão de preço. Essa diferença de seis vezes são recursos jogados na lata do lixo, que só aumentam o lucro das empresas de medicamentos. Quando vem o cálculo atuarial para decidir de quanto vai ser o reajuste do plano de saú­de no ano seguinte, esse desperdício entra na conta e todo mundo aqui está pagando”, avalia Alves.

Outro ponto a ser discutido é que desde 2022 o SUS tem um limiar de custo-efetividade que ofe­rece parâmetro para os preços de incorporação, o que é uma demanda ainda não atendida do setor de saúde suplementar para ajudar na sustentabili­dade financeira do sistema.

Luciene Bonam explica como a definição de um limiar impactou o trabalho da Conitec e a defi­nição e a recomendação de tecnologias feitas pela comissão. “Ter esse parâmetro é importante porque qualifica as decisões. Foi uma decisão fundamen­tada em técnica, em ciência, em método, que levou em conta questões como a expectativa de vida da população brasileira e o que se quer alcançar com os gastos em saúde. Antes disso, sabíamos dessa relação de custo-efetividade, mas não tinha um parâmetro. Hoje, temos esse parâmetro esta­belecido, assim como outros países”.

A diretora do DGTIS ainda acrescen­ta que a Conitec também avalia o im­pacto orçamentário, que é a demanda de uma nova tecnologia vezes o custo dela anualmente. “Uma tecnologia usada para doenças raras, por exemplo, pode ter um custo alto e impactar até cem pessoas. Mas posso ter outras demandas com va­lores que entendemos como mais supor­táveis dentro do sistema, mas pode ser uma demanda pra milhões de brasileiros e o impacto orçamentário fica elevado, podendo até ultrapassar o orçamento do Ministério da Saúde”, acrescenta.

A ANS tem uma cadeira dentro da Conitec justamente porque é o órgão res­ponsável pelas incorporações no sistema de saúde suplementar.

Alexandre Fioranelli, diretor de Nor­mas e Habilitação dos Produtos da ANS, reconhece que há inúmeros desafios.

“O crescimento contínuo dos custos em saúde, a produção cada vez maior de novas tecnologias e as mudanças no per­fil epidemiológico da população brasileira têm trazido desafios ao processo de in­corporação de tecnologias em saúde, tan­to na Conitec quanto na ANS. Podemos ressaltar o contínuo investimento em capacitação e treinamento na área como um dos principais desafios enfrentados nos últimos anos, tendo como resultado iniciativas exitosas de formação de pessoal especializado e dis­seminação de conhecimento na área de ATS. Nesse sentido, a atualização deve ser constante”.

 
“O crescimento contínuo dos custos em saúde, a produção cada vez maior de novas tecnologias e as mudanças no perfil epidemiológico da população brasileira têm trazido desafios ao processo de incorporação de tecnologias em saúde, tanto na Conitec quanto na ANS”

ALEXANDRE FIORANELLI,  diretor de Normas e Habilitação dos Produtos da ANS

Para o diretor da Abramge, o limiar de custo-e­fetividade é um instrumento de gestão que ajudaria a equilibrar o sistema de saúde suplementar. Quan­do se faz uma incorporação é preciso usar uma ma­triz de decisão que mostra essa relação de custo-e­fetividade. Quando a efetividade é baixa com um custo mais alto, ninguém vai incorporar. Quando tem efetividade maior e custo mais baixo é a situ­ação ideal e ninguém discute se vai incorporar ou não. O confronto ocorre quando há uma efetividade maior e um custo maior também. Geralmente é o caso das inovações.

“Como os países tratam disso? Com o limiar cus­to-efetividade. Todos os países do mundo condicio­nam as incorporações a um limiar de custo-efetivi­dade ou, no mínimo, uma forte negociação de preço. A falta desse limiar na saúde suplementar cria essa distorção absurda”.

Uma das áreas que tem sido muito afetada pelas inovações é a oncologia, já que a incidência de cân­cer aumentou e o surgimento de novas medicações e terapias é constante.

“No caso específico da oncologia, a preocupa­ção em termos globais tem sido o elevado número de diagnósticos. Do mesmo modo, os novos medi­camentos para as doenças raras representam um importante avanço no tratamento dessas condições, implicando, no entanto, em possíveis impactos eco­nômicos”, avalia Alexandre Fioranelli.

A SUSTENTABILIDADE É DO SISTEMA TODO

Discutir preço e limiar de custo-efetividade olhando para o sistema de saúde suplementar é, tam­bém, olhar para o sistema de saúde como um todo, afinal, só existe um Brasil.

O SUS, na verdade, é um sistema único de saúde e assim deveria ser considerado para o País. Então, se existe um limiar de custo-efetividade, deveria ser um único para todo o País e não ter um preço para o SUS e um preço para quem tem plano de saúde.

No final, todo mundo que precisa de assistência em saúde acaba penalizado. Hoje, existe uma grande rotatividade entre o SUS e a saúde suplementar e tam­bém dentro da saúde suplementar. O downgrade de plano de saúde está acontecendo, inclusive, na classe média alta. E muitas vezes a pessoa não consegue pa­gar nem mesmo o plano mais barato e vai para o SUS. Já o usuário do SUS, consegue um emprego e vai para a saúde suplementar. Hoje, 80% da saúde suplemen­tar é composta por planos coletivos empresariais.

“Por isso, falo que as compras deveriam ser em grande quantidade e com negociação única, o que não significa que saúde suplementar e governo vão pagar o mesmo valor. O preço é único, mas depois tem im­posto, alguns condicionantes que alteram o preço, mas não tem sentido o preço base ser di­ferente. Claro que uma agência que fosse única, fortalecida, com todos esses crité­rios de avaliação de tecnologia em saúde, com forte negociação de preço, com forte poder de compra para fazer com que a in­dústria se adeque às necessidades, com in­teligência para não afastar as inovações do país, seria muito melhor. Isso é feito, por exemplo, em uma das agências que mais admiro no mundo, que é a da Austrália”, diz o diretor técnico-médico da Abramge.

O problema da sustentabilidade é mundial, mas aqui é agravado por essas distorções. Por isso discutir custo-efetivi­dade tem sido cada vez mais importante. As discussões no campo das inovações em saúde não podem pressupor que o mais caro é sempre o melhor. Os critérios são sempre dados pela medicina baseada em evidência, por protocolos de atendi­mento que estão presentes em pratica­mente todas as patologias.

O mais importante é que as agências e comissões cuidem da segurança e da efi­cácia dessas medicações. É importante essas agências se basearem nos estudos científicos para evitar o imperativo da ciência, o imperativo econômico, o impe­rativo comercial. Sem levar em conside­ração outras questões extremamente im­portantes, que têm muito mais valor em saúde do que a própria inovação, e quem acaba prejudicada é a população.

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