Ponderar custo-efetividade e direitos individuais sob a perspectiva de responsabilidades coletivas despontam como premissas para o equilíbrio dos sistemas de saúde
A s consequências da judicialização da saúde são menos discutidas no país do que as cifras envolvidas. Neste sentido, a fala de Daniel Wang, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, enfoca uma das raízes do problema, que é a maneira como ocorre a avaliação de novas tecnologias no Brasil. Passa pela importância, cada vez mais evidente, de se considerar custo versus efetividade. Provoca também uma reflexão sobre as difíceis decisões do Judiciário, que não são menos difíceis para os gestores de saúde, principalmente quando impostas e limitantes.
O dilema entre benefícios individuais e responsabilidades coletivas é colocado pelo pesquisador como algo que precisa ser amadurecido e resolvido pela sociedade, a partir de políticas públicas mais consolidadas. Nenhum país do mundo pode se dar ao luxo de fazer diferente, muito menos um Brasil com severos desafios econômicos para oferecer condições dignas e menos desiguais aos seus cidadãos.
Daniel Wang estuda o tema há pelo menos 15 anos. É pós-doutor e doutor em Direito e mestre em Filosofia e Políticas Públicas pela London School of Economics and Political Science, no Reino Unido, onde teve oportunidade de acompanhar de perto a realidade do National Health Service (NHS), o famoso sistema britânico que inspirou os constituintes e sanitaristas brasileiros na concepção do nosso Sistema Único de Saúde (SUS) há 30 anos. Wang foi também professor de Saúde e Direitos Humanos no Departamento de Direito da Queen Mary University of London, entre outras atividades de sua intensa vida acadêmica. Atualmente, é membro do Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo. Confira, a seguir, uma leitura atual sobre temas tão relevantes para a sustentabilidade dos sistemas de saúde.
VISÃO SAÚDE – Há problemas no processo de incorporação de novas tecnologias no Brasil?
WANG – O tema é muito controverso. A decisão sobre in- corporar ou não uma tecnologia pode determinar se os pa- cientes terão acesso ou não a um tratamento. São decisões que envolvem grande volume de recursos. Muitas delas são tomadas sem evidência científica totalmente conclusiva. Dificilmente, um modelo de avaliação de tecnologia e de decisão sobre a incorporação será unanimidade. Dito isso, acredito que o Brasil avançou bastante com a criação da Conitec [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnolo- gias no SUS], em 2011. É um sistema que, comparado com o anterior, tem mais transparência e participação; existe um foco muito grande em evidências e em considerações econômicas. Cabe à sociedade e a todos os stakeholders co- brar que haja sempre clareza dos critérios utilizados, rigor científico, consistência no uso desses critérios e indepen- dência do órgão decisor. A Conitec faz a recomendação [à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde], mas quase sempre ela acaba sendo seguida, então tem um poder muito grande. É preciso in- dependência com relação a grupos de pressão.
A área de economia da saúde e as avaliações de custo- efetividade vêm crescendo e amadurecendo no Brasil? Não tem como fugir disso. Você tem cada vez mais a introdução de novas tecnologias no mercado a um custo cada vez mais alto e sistemas de saúde muito pressiona- dos, que não conseguem atender toda a demanda que existe. Os sistemas terão que, em algum momento, usar critérios econômicos para decidir. Senão, provavelmente serão sistemas menos eficientes e que oferecem menos em saúde do que poderiam. A economia da saúde no Brasil é menos forte do que poderia ser. Em outros paí- ses, existem muito mais estudos e muito mais gente que entende desse assunto. No Brasil, ainda não fica claro para muitas pessoas o que é custo-efetividade, mas a ten- dência é isso crescer e cada vez mais fazer parte do reper- tório das pessoas envolvidas nos sistemas de saúde. Uma das vantagens de ponderar o custo-efetividade é que não adianta pensar somente em benefício e esquecer o custo, mas também não resolve só se assustar com o custo e desconsiderar o benefício. Esse tipo de análise permite colocar os dois aspectos na balança. Sem isso, olhar so- mente o custo ou somente o benefício leva a uma forma de decisão muito longe da ideal para os sistemas de saú-
de. O sistema de saúde eficiente é aquele que sabe onde colocar os recursos disponíveis.
Quais seriam estratégias para equalizar a cobertura de novos tratamentos para uma população de mais de 200 milhões de pessoas e os altos custos?
Os sistemas de saúde precisam ser obcecados por evidên- cias científicas. Não podem se dar ao luxo de gastar com tratamentos de eficácia e efetividade duvidosa, enquanto tantas terapias de eficácia e efetividade comprovadas não são oferecidas. Os sistemas de saúde precisam buscar tra- tamentos que podem trazer um grande retorno com uma dada quantidade de recursos. Sistemas que não focam em custo-efetividade irão acabar gastando muito para trazer poucos benefícios a poucas pessoas em detrimento de in- tervenções que conseguem, a baixo custo, trazer grandes benefícios de saúde pública. Os sistemas de saúde também precisam pensar em reduzir desigualdades. Às vezes as pes- soas esquecem, mas esse é um dos objetivos dos sistemas de saúde. É importante, ao analisar um novo tratamento, não o descolar de todo o serviço de saúde desenvolvido para tratar o paciente com uma determinada doença. O medicamen- to é apenas um dos elementos no cuidado à saúde. Uma política para uma determinada doença precisa contemplar todas as fases dela, desde prevenção, diagnóstico, cuidados pós-tratamento… É preciso uma visão mais holística. Mui- tas vezes, se você foca só numa determinada tecnologia, você não enxerga o cenário e pode tomar decisões erradas, como por exemplo incorporar um tratamento que, sozinho, custará o equivalente ao total de recursos disponíveis para o cuidado ao paciente.
É possível comparar esse cenário brasileiro ao de outros países?
Temos que ter muito claro que nenhum sistema do mun- do consegue oferecer tudo para todo mundo gratuitamen- te e imediatamente. A avaliação de tecnologia em saúde com custo-efetividade começou e é muito mais desen- volvida em países com sistemas de saúde consolidados, como Noruega e Reino Unido. Mesmo os sistemas de saú- de mais desenvolvidos sentem necessidade de fazer um uso criterioso dos recursos. Claro que aqui existem todos os problemas de subfinanciamento do sistema de saúde brasileiro, de ineficiência… Os problemas são vários, mas, independentemente deles, existe a necessidade de focar em custo-efetividade.
A judicialização da saúde pode beneficiar o cidadão, mas prejudica a sociedade. Por que é tão difícil ter mecanismos para enfraquecê-la?
A judicialização, por si, não é nem boa nem ruim. O que realmente importa é o tipo de judicialização. Por exemplo, em medidas do governo que são irracionais, discriminató- rias, feitas sem base em evidência científica, não tem nada de errado em o Judiciário intervir. O problema é a judiciali- zação feita sem critérios e quando ela ignora as dificuldades de se fazer uma política de saúde, que recursos são escassos, que é preciso olhar as evidências científicas com cuidado e que existem mais necessidades do que recursos para aten- dê-las todas. O problema no Brasil é o Judiciário intervir como se o direito individual à saúde fosse absoluto e preva- lecesse sobre o direito do resto da coletividade e o processo dar peso quase absoluto à caneta do médico. Se a pessoa consegue apresentar um laudo médico dizendo que preci- sa de um tratamento, isso vale mais do que, por exemplo, uma ausência de registro da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]. Não podemos diminuir a dificuldade que é, para o juiz, tomar esse tipo de decisão porque existe a questão que a literatura chama de “vida identificada” ver- sus “vida estatística”. A pessoa que pede tem um nome, um documento, uma história. Quem ganha, para o juiz, está muito claro. Quem perde é menos claro. Alguém vai perder lá na ponta, mas essa pessoa não aparece ali como prejudi- cada diretamente por aquele ato. Isso cria essa tendência de querer ajudar quem está na sua frente e, de alguma forma, não considerar as consequências dessa sua decisão. Eu acho isso muito humano e não diminuo em nada a dificuldade do magistrado de tomar esse tipo de decisão. Mas, o fato de serem decisões difíceis, não justifica a forma como elas são feitas quando ignoram as consequências. O fato de um juiz não querer fazer a escolha não faz com que a neces- sidade dessa escolha desapareça. Simplesmente, a escolha será feita em outro lugar. Essa decisão provavelmente irá tornar a vida de outras pessoas mais difícil. A decisão dele de não querer ficar com a consciência pesada por não ter “ajudado” alguém tornará mais difícil o trabalho do ges- tor. E a consciência desse gestor? Ele está o tempo todo tomando decisões difíceis em saúde. Algumas determina- ções podem gerar escassez lá na ponta para os profissionais do sistema de saúde, que muitas vezes também precisam fazer escolhas difíceis. Estima-se que a judicialização custa atualmente R$ 6 bilhões ao ano. Um volume de recursos como esse não sai do sistema de saúde sem consequências.
“Quem ganha, para o juiz, está muito claro. Quem perde é menos claro. Alguém vai perder lá na ponta, mas essa pessoa não aparece ali como prejudicada diretamente por aquele ato. Isso cria essa tendência de querer ajudar quem está na sua frente e, de alguma forma, não considerar as consequências dessa sua decisão.”
Tem coisas que deixarão de ser feitas e serviços que não serão ofertados da maneira ideal. É difícil falar “não”, mas alguém precisará fazer essa escolha em algum momento, querendo os juízes ou não. Fica a reflexão de qual é a res- ponsabilidade do Judiciário frente a essas questões: é lavar as mãos para dormir tranquilamente ou aumentar o diálogo para que todos tomem decisões com base em critérios pre- viamente discutidos? Toda a discussão só consegue evoluir se aceitarmos que existem mais necessidades do que recur- sos. Se você não aceita essa premissa, não tem como avan- çar. O caminho é perguntar: já que não é possível dar tudo para todo mundo, como podemos dar o que podemos da melhor forma possível? Essa é a experiência internacional: há países com investimento per capita em saúde oito ou dez vezes maior que o nosso e, mesmo assim, encontram uma série de dificuldades, colocam limitações também e consideram custo-efetividade para tomar decisões difíceis.
Há uma questão relevante envolvendo a saúde que ainda não foi pacificada pelo Supremo Tribunal Federal. Poderia comentar o tema?
O Supremo teve uma decisão, no recurso extraordinário 566471, sobre fornecimento judicial de tratamento não incorporado ao SUS. O julgamento foi concluído, mas o STF ainda não firmou a tese de repercussão geral, que, a princípio, irá vincular as decisões de todas as outras ins- tâncias do Judiciário. Ainda não sabemos qual entendi- mento será firmado pela Corte. Há duas teses em disputa. A primeira mantém o que temos hoje: se um paciente consegue provar a necessidade de um tratamento que não está incorporado ao SUS e o SUS não tem uma alternativa terapêutica, o tratamento deverá ser fornecido. A necessi- dade individual do paciente prevalece. A segunda tese é
de que, se o sistema de saúde avaliou a tecnologia e deci- diu não a incorporar, o Judiciário tem que respeitar essa negativa, que pode ser dada por falta de evidência cientí- fica, impacto orçamentário ou baixo custo-efetividade. O Judiciário respeita a decisão de política pública do sistema de saúde; existe um prestígio à decisão tomada pelo siste- ma de saúde para a coletividade. Teremos que aguardar essa decisão final.
Até para o STF são decisões difíceis de serem tomadas? Sim, imagina a pressão pública que é dizer “não” para um determinado tratamento. Quem ganha com a judicializa- ção faz muita pressão e quem perde, muitas vezes, nem sabe que está perdendo. Em nenhum momento, quero fazer um julgamento moral sobre as pessoas que entram com ações judiciais. Elas estão agindo de acordo com as regras do nosso sistema. Também não diminuo em nada o sofrimento nem a angústia dessas pessoas. O que tento in- sistir é que as necessidades dessas pessoas precisam ser co- locadas dentro do contexto do sistema de saúde, que tem mais demandas legítimas para atender do que recursos. O Judiciário no Brasil tende a considerar o direito à saúde como individual e absoluto. Se eu tenho qualquer necessi- dade de saúde, logo o sistema de saúde tem o dever de me fornecer o tratamento. Eu discordo. Comparo, por exem- plo, com o direito à liberdade de expressão. Não posso di- zer o que quero, quando quero e como quero. Não posso injuriar, difamar, caluniar nem discriminar. Isso significa que meu direito à opinião é ignorado? Não, significa que meu direito à liberdade de expressão tem que ser pondera- do com os direitos de outras pessoas, por exemplo, de não serem discriminadas ou ofendidas. O direito à saúde não pode ser absoluto porque ele existe num contexto de um sistema de saúde que é responsável por outras pessoas que também têm necessidades e direito à saúde.
Essas questões também ocorrem no sistema privado?
O sistema privado é um pouco diferente. Existe a figura de um contrato e a regulação da ANS [Agência Nacio- nal de Saúde Suplementar]. É claro que sistemas privados também precisam colocar limites. Só que os limites são colocados pelo contrato e pela regulação. A relação entre cidadão e SUS e a relação entre usuário e plano de saúde são diferentes. Mas o sistema privado também tem esse imperativo de pensar em custo-efetividade, de oferecer o melhor serviço possível ao preço mais baixo possível é também um imperativo de um bom sistema suplementar de saúde. A judicialização para forçar um plano a cumprir o contrato e a regulação da ANS não é negativa. A judicia- lização negativa é aquela que exige do plano além do que está no contrato, além do que está na regulação, porque depois a decisão sobrecarrega os outros usuários do plano e você pode chegar ao nível em que isso eleva o custo para todo mundo e diminui o acesso à saúde privada.
Acredita que a sociedade brasileira está amadurecendo nessas discussões?
Em termos de opinião pública, o apelo emocional dos casos individuais é sempre muito forte, mas avançamos bastante. Já conseguimos colocar o problema, que é pensar de que maneira você distribui de forma justa os recursos de saúde. Existe um problema aí que, como sociedade, temos que enfrentar.
Em sua opinião, a visibilidade que a pandemia da Covid-19 deu ao setor de saúde muda alguma coisa?
De fato, na pandemia houve uma postura de bastante maturidade por parte de algumas instituições, por exem- plo, na questão da alocação de vagas de leitos. Existia um grande risco de faltarem leitos, o que chegou a acontecer em alguns lugares. Houve uma discussão muito interes- sante envolvendo debate público sobre os critérios que se usa para alocar leitos de UTI se começarem a faltar. Se houvesse uma falta nacional, não sei como seria na prá- tica, mas a discussão foi sofisticada. De uma forma geral, o Supremo Tribunal Federal, em questões relacionadas a medidas para controle da pandemia, teve uma grande maturidade primeiro para entender que os gestores pre- cisavam de uma margem de discricionaridade para atuar, pois o Judiciário tem que evitar intervir sob risco de criar privilégios individuais em detrimento de esforços coleti- vos para o controle da pandemia. Houve um avanço no entendimento pelo Judiciário também de que os gestores trabalham em condições inferiores às ideias, com limita- ções de tempo, de recursos e de informação. Houve, ain- da, uma ênfase com relação ao uso de evidência científica pelos tomadores de decisão. Nem sempre o Judiciário teve essa postura com relação a questões de saúde, mas na pan- demia pelo menos o Supremo Tribunal Federal tem tido. Se esse é um avanço que irá se manter ou se desaparece junto com a pandemia, não sei. Mas, pelo menos nesse contexto, vi esse passo muito interessante pelo STF.