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Atenção Primária em alta

Inovações na gestão podem garantir mais acesso real à saúde de qualidade

Para o brasileiro Edson Araújo, que atua como economista sênior do Banco Mundial, em Washington, há oito anos, fortalecer a atenção primária é a estratégia mais adequada para qualifi car o gasto em saúde aqui no nosso País. Graduado pela Universidade Federal da Bahia duas décadas atrás, direcionou sua carreira acadêmica à Economia em Saúde, com mestrado na University of York, Inglaterra, e doutorado na Queen Margaret University, Escócia. O especialista explica que o Banco Mundial apoia os governos em políticas setoriais que tenham o objetivo de diminuir a pobreza. No Brasil, realiza estudos voltados a orientar políticas públicas e fi nancia iniciativas – baseadas no conhecimento local e em estratégias que já deram certo em outras partes do mundo – para resolver problemas específi cos. Nesta entrevista, Araújo faz uma refl exão sobre os avanços do sistema de Saúde do Brasil e as dores que ainda permanecem.

FOTO: CÂMARA DOS DEPUTADOS

Sua atuação tem sido muito voltada à atenção primária. Por quê?

Em âmbito global, o Banco Mundial tem trabalhado com suporte ao desenvolvimento de programas de atenção primária nos países. É a necessidade de foco na prevenção, controle de custos, acesso longitudinal, evitando desperdícios e tratamentos desnecessários. Existe um consenso dos organismos internacionais de que a atenção primária é um pilar importante para a cobertura universal de saúde. Mais especificamente no Brasil, desde 2016, temos olhado para a eficiência do gasto público com saúde e o seu retorno para a população. Quando comparado com o gasto hospitalar e ambulatorial, o referente à atenção primária é muito mais eficiente do ponto de vista de serviços, da qualidade e para evitar gastos com média e alta complexidade.

Fala-se que, a cada 1 real investido em atenção primária, se economizam 4 em outros serviços de saúde. É isso mesmo?

Já ouvi este número, não ouvi a conta que chega nele, o que podemos dizer é que cada ponto percentual de eficiência na atenção primária tem um impacto de até 8 pontos percentuais na eficiência da alta e média complexidade.

Por que a atenção primária é tão estratégica?

Ela torna todo o sistema mais eficiente. A atenção primária tem um papel muito forte e importante de racionalizar o acesso, seja do ponto de vista do indivíduo que utiliza, seja dos profissionais que demandam exames etc. Todos os países de sistema universal usam a atenção primária como porta de entrada e hoje até a Saúde Suplementar também o faz, inclusive no Brasil. Para o SUS é importante que a atenção primária passe a funcionar como essa porta de entrada. Num sistema universal, integral e com demanda espontânea, não há racionalidade no acesso ao serviço e à tecnologia.

Desde 2016, o Banco Mundial tem foco em desenvolver atenção primária no Brasil?

Neste período temos focado muito na qualidade do

gasto público com Saúde. Publicamos o relatório “Um Ajuste Justo”, em 2017, motivados pela crise fiscal que o País enfrentou desde 2014 e ainda continua. Havia uma percepção do governo brasileiro e nossa sobre a importância de fazer um ajuste fiscal para as contas públicas estarem equilibradas e com impacto positivo na economia. Depois deste primeiro momento de diagnóstico, olhamos setores mais específicos como atenção hospitalar, mercado de trabalho, regionalização. Uma das mensagens principais desta análise é justamente a necessidade de se investir na atenção primária, melhorar os incentivos para o seu financiamento e para o trabalho das equipes na área. Nos últimos meses, temos atuado junto ao Ministério da Saúde em várias propostas de fortalecer a atenção primária. Foi criada a Secretaria de Atenção Primária, depois o Médicos pelo Brasil e agora vem o novo programa Previne, que muda as regras de financiamento. O Banco Mundial tem participado dessas discussões e esperamos que isso aconteça não só em nível federal, mas também em alguns Estados e até capitais.

Você é otimista em relação ao que está sendo construído para a evolução da qualidade do investimento?

Tem muita coisa positiva acontecendo. Essas mudanças que o Ministério da Saúde está fazendo são bem inovadoras e colocam o sistema público brasileiro na rota das melhores práticas. A liberação dos recursos da atenção primária para os municípios será agora por captação. No Reino Unido, que tem um sistema de Saúde no qual o Brasil se espelha muito, isso é feito desde a década de 1970. O Brasil até agora pagava per capita, ou seja, a pessoa poderia nunca ter ido a uma unidade de saúde da família e ainda assim o município recebia o recurso. Fala-se muito da universalização, mas é difícil você alcançá-la na prática quando não há um contato contínuo entre o cidadão e o sistema de Saúde. Agora, teremos o incentivo de que o município só receberá o recurso se tiver o cidadão cadastrado na Saúde da Família. Assim, você garante o acesso. Outra coisa é que antes não existia um compromisso em médio e longo prazos das equipes com os pacientes e agora se cria uma tendência nesta direção. A maioria dos países, tanto em sistema público quanto privado, tem pagamento por desempenho para compensar o esforço e a qualidade. No Brasil também será assim.

Há muitos ideólogos do SUS que pensam no setor privado como inimigo, que vai diminuir a universalidade, quando não é um fato

Quando se projeta aferir os primeiros resultados?

Haverá um período de transição em que nenhum município perderá recursos. O pagamento por desempenho deve levar um tempo maior para que os municípios e as equipes se ajustem à nova sistemática, mas é possível que ainda em 2020 seja possível sentir os reflexos. Já a questão da captação pode ter um efeito imediato porque os municípios e as equipes irão entender que, para ter mais recursos, precisarão ter mais gente cadastrada. O Fundef [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério] foi criado, há 20 anos, de maneira semelhante. O repasse era feito aos municípios por estudante matriculado. Essa política universalizou o ensino fundamental no Brasil. Os municípios até providenciavam ônibus para buscar os alunos da zona rural, porque precisavam encher as salas de aula para ganhar mais. Acredito que a nova sistemática de financiamento da atenção primária pode ter esse mesmo efeito.

Qual é o tamanho do subfinanciamento da Saúde? Sem dúvida, existe o subfinanciamento, mas é uma pena que as discussões sobre políticas públicas no Brasil nos últimos 30 anos só tenham focado neste tema. Entendo que mais recentemente o foco tem aumentado em entender como e onde se gasta. Atenção primária tem 16% do orçamento público; a média e alta complexidade,

45%. Existe uma ineficiência alocativa: gastamos muito com o que é caro e dá pouco retorno e gastamos pouco com o que é mais custo-efetivo. Em sistemas mais eficientes, utiliza-se o conceito “money follows the patient” – o dinheiro segue o paciente. O que você gasta com média e alta complexidades passou pela atenção primária porque foram os médicos da atenção primária que decidiram quais tratamentos seriam feitos, ou seja, existe um fluxo de recursos. Hoje, o sistema brasileiro é mais aberto a demandas por especialidades e hospitalares, sem que a atenção primária seja a porta de entrada obrigatória. Gastamos pouco com Saúde pública e gastamos muito mal. Os hospitais com menos de 100 leitos, que são 30% do total, têm maiores taxas de mortalidade hospitalar, de infecção, menos consultas por pacientes e taxa de utilização menor. O gasto público com Saúde no Brasil é de 3,8% do PIB (Produto Interno Bruto), além de 0,5% de gasto tributário indireto, enquanto os países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] gastam de 6% a 8%. Mas, não podemos pensar só em aumentar sem ter garantido o retorno. Calculamos que R$ 21 bilhões a mais deveriam ser empregados na atenção primária, o que daria 30% do gasto total em nível federal. O Ministério da Saúde diz que aumentou R$ 2,5 bilhões para a atenção primária. Já é um avanço neste caminho e espero que continue este processo.

Quais seriam as medidas concretas para que os setores público e privado atuassem de maneira mais sinérgica?

Essa é uma das questões que discutimos por décadas. Falamos que tem que haver maior integração, mas não conseguimos avançar na prática. Há muitos ideólogos do SUS que pensam no setor privado como inimigo, que vai diminuir a universalidade, quando não é um fato. Acredito que cada vez mais a sociedade amadurece e percebe que os dogmas têm que ser abandonados e que as melhores práticas de políticas públicas precisam ser adotadas. Um movimento importante que ocorre no Brasil e no mundo é o de reconhecer a importância da atenção primária não só na prevenção, mas principalmente na racionalização do acesso. Porta de entrada, a coordenação do cuidado, a certeza de que os exames e os tratamentos são feitos quando necessário, que não são repetidos etc. são objetivos de ação tanto no setor privado como no público. O ideal seria fazer a integração entre o público e o privado na base, que o setor público pudesse aceitar pessoas cobertas por planos de saúde na sua atenção primária e vice-versa. Em uma cidade pequena em que uma operadora tem uma carteira sem escala para ser eficiente, poderia comprar o serviço de atenção primária do município para oferecer aos seus usuários. Nas grandes capitais, onde o setor público não tem estrutura física para chegar a todos os lugares, poderia ser o contrário: os pacientes seriam cobertos pelos serviços privados e estes teriam a remuneração pelo setor público. Seria interessante permitir essa integração com pacotes semelhantes de serviços e baseados nos princípios do SUS de universalidade e integralidade. Há uma oportunidade boa, neste momento, de fazer a integração pela atenção primária porque existe o reconhecimento da sua importância como reguladora do acesso. Permitir esses atendimentos compartilhados dos pacientes seria um caminho para fazer essa integração de uma forma mais eficiente, com todo mundo coberto por equipes de saúde primária, sejam públicas ou privadas, mas com trajetórias posteriores diferentes dentro do sistema de acordo com cada cobertura.

“O ideal seria fazer a integração entre o público e o privado.”

Qual a sua opinião sobre alterar a legislação brasileira para oferecer planos de saúde diversificados com o intuito de ampliar o acesso à Saúde privada?

A princípio, acho uma excelente ideia você ter planos que foquem na prevenção, na atenção primária, na universalização do acesso, especialmente para os grupos populacionais que não usam tanto os serviços, como os mais jovens. Mas é importante não fragmentar em excesso porque isso pode diminuir escala e aumentar a competição por recursos profissionais, por exemplo. O que acontece quando você tem cobertura somente ambulatorial é que as pessoas, ao precisar de procedimentos mais complexos, voltam para o sistema público e começam do zero, repetem todos os exames. Esse sistema de informação sobre o paciente precisaria ser integrado para não haver desperdício. As mudanças podem ser boas desde que sob uma perspectiva de maior integração com o setor público. Integrar as bases de dados do SUS é um desafio e um segundo passo seria essa integração com a da Saúde Suplementar. Temos soluções tecnológicas para isso. Falta mesmo dar o primeiro passo.

Como o nosso sistema é visto hoje no exterior?

É um exemplo para outros países de renda média. O Brasil foi inovador quando lançou o programa dos agentes comunitários de saúde e depois o Saúde da Família. Por outro lado, enfrenta desafios peculiares. Para mencionar dois, temos o da desigualdade socioeconômica, que é muito grande no País, e o envelhecimento populacional. Apesar das conquistas muito importantes, são cenários que podem colocá-las em risco. Algumas questões estruturais não avançaram, como essa do público e do privado. Enquanto outros sistemas de saúde são mais híbridos, no Brasil temos esse tabu de ter que ser financiamento público e provisão estatal. As organizações sociais da Saúde já mostraram resultados de maior eficiência onde foram contratadas. Mas, quando se fala em aumentar a atuação das OSs, ainda há muita resistência. Os médicos de Saúde da Família do NHS [National Health System, do Reino Unido] não são funcionários públicos. São entes privados que têm contrato com o sistema de Saúde inglês. Para garantir a universalidade, é importante que a pessoa não pague e que os gastos públicos sejam direcionados aos mais pobres. No entanto, do ponto de vista da eficiência, não interessa se a natureza do serviço é pública ou privada; importa que o atendimento seja de qualidade e resolva o problema de saúde do cidadão.

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