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Direito e economia andam juntos

Para Secretário Nacional do Consumidor, maior segurança jurídica aumentaria a concorrência e, portanto, traria vantagens aos beneficiários de planos de saúde

O professor universitário e doutor em direito Luciano Timm ganhou notoriedade por sua atuação como advogado na área de mediação de conflitos. Em janeiro de 2019, Timm foi nomeado para comandar o Sistema Nacional de Proteção ao Consumidor que, além da Secretaria Nacional do Consumidor, envolve centenas de Procons e departamentos do Ministério Público e da Defensoria Pública espalhados pelo país. Como principal responsável pela proteção aos direitos do consumidor no Brasil, o advogado pretende implantar medidas para dar maior segurança jurídica ao mercado e incentivar a adoção de ferramentas de mediação entre consumidores e empresas. Acompanhe, na entrevista a seguir, como Timm enxerga esses desafios na área da saúde suplementar.

FOTO: ISAAC AMORIM/AG. MJ

VISÃO SAÚDE – Como o senhor avalia a relação entre planos de saúde e seus consumidores no Brasil de hoje? O que precisa ser melhorado?

LUCIANO TIMM – Existem muitos problemas nessa re- lação. O brasileiro está vivendo mais, assim como a medi- cina, serviço hospitalar, os medicamentos e a tecnologia, como um todo, têm evoluído bastante, o que aumenta substancialmente os custos de manutenção do sistema. Em paralelo, vivemos uma grande crise econômica, que sacrificou empresas e causou grande desemprego. Natu- ralmente essa equação de aumento dos custos e diminui- ção das receitas dos consumidores, via perda salarial e de emprego, abre grande espaço para desarmonia. Ademais, há uma considerável taxa de judicialização dos contra- tos de saúde, o que dificulta ainda mais a precificação dos serviços. Ainda mais porque não há percepção de confiança nas agências reguladoras. Temos, então, de harmonizar essa relação com esclarecimento, regulação eficiente, previsibilidade do judiciário e maior confiança nas instituições.

Quais demandas de beneficiários dos planos de saúde são justas e quais não são?

Vivemos em um mercado regulado. Medicamentos são controlados, assim como os planos de saúde. Em princí- pio, teremos de aceitar que as agências reguladoras preci- sam funcionar bem e que os planos negociados de acor- do com as regras regulatórias deveriam, como regra, ser respeitados pelos juízes. Algumas vezes juízes se valem de princípios jurídicos de elevada vagueza semântica como boa-fé e função social para conceder tratamentos de saúde não previstos em contratos cujas condições fo- ram previamente aprovadas pelo regulador. Naturalmen- te que existem situações de abuso pelos planos de saúde, mas esses abusos devem ser tratados ou pela regulação, ou dentro da exceção que esse comportamento oportu- nista ocorre; e para que haja justiça, as decisões judiciais precisam ser universalizadas para os demais consumido- res, via precedentes vinculantes. Com isso, a regulação feita pelo judiciário será universalizada e comporá o cus- to da decisão no plano oferecido ao mercado. Tudo feito de forma transparente.

O que falta para que as empresas do setor atuem com maior segurança jurídica?

Creio que precisamos ter nomeações técnicas para as agên- cias reguladoras, fiscalização de sua atividade, uso de ferramentas de AIR na regulação e que a regulação garanta maior concorrência no mercado. Finalmente, o judiciário precisa dar deferência às decisões do regulador, como acon- tece, por exemplo, nos EUA. Não podemos apostar mais no controle judicial casuístico de contratos massificados. Além disso, precisamos, como já disse, maior organicidade entre os órgãos de defesa do consumidor.

Em artigo, o senhor escreveu que a Constituição Federal precisava passar por uma lipoaspiração. Como o senhor avalia a interpretação que tem sido dada ao direito fundamental à saúde por cidadãos e magistrados?

Uma constituição não sobrevive sem um substrato econô- mico e social. Países com maior índice de respeito a direi- tos sociais não necessariamente têm previsão desses direitos em suas constituições. Pense-se nos países escandinavos, na Inglaterra. Eles têm direito à saúde garantido à população, mas não tem essa previsão constitucional na mesma ampli- tude que o Brasil. Temos uma crença que os problemas so- ciais serão resolvidos por um texto legal ou por uma decisão judicial, mas isso não funciona de modo tão simples. Uma constituição, com os direitos nela elencados, precisa caber no orçamento público. Além disso, temos um sistema cons- titucional que mistura o controle difuso de constituciona- lidade norte-americano com o concentrado europeu. Mas não temos a regra do precedente vinculante que existe nos Estados Unidos, de modo que a liberdade interpretativa do texto constitucional brasileiro acaba gerando insegurança jurídica, dando margem a um ativismo judicial e mesmo a um grau de politização das decisões judiciais. Esse fenô- meno não é necessariamente ruim, mas o modelo parece esgotado, pois são muitos processos, a um custo muito ele- vado para o contribuinte, fazendo com que o judiciário bra- sileiro se torne um dos mais caros do mundo em termos de percentual do Produto Interno Bruto. Isso acaba refletindo num maior preço ao consumidor.

Por favor, explique sua visão a respeito da necessidade de avaliação de impactos econômicos das leis.

Como expliquei acima, não há uma separação absoluta entre os campos da economia e do direito. Há influência recíproca. O direito fornece à economia, ou deveria ofere- cer, segurança e previsibilidade para a tomada de decisões da vida em sociedade. E a economia oferece ao direito o substrato material para a concessão de direitos. Infeliz- mente, a implementação de direitos, mesmo os mais im- portantes, como saúde e educação, tem custo; como disse um jurista carioca, “direitos não nascem em árvore”. No entanto, é importante salientar que uma coisa é levar a sério a economia e seus impactos, que é uma ferramen- ta analítica cientificamente comprovada; outra coisa é atender aos interesses das empresas. Não é dessa última situação que estamos falando aqui. Não estamos falan- do em deixar o consumidor abandonado à própria sorte. Temos de evitar os sofismas que remetem o público para decisões tomadas baseadas em sentimentos, como raiva, por exemplo. A neurociência está para nos ajudar a nos precavermos contra esse uso estratégico de narrativas des- providas de evidências empíricas. Precisamos, em temas complexos, utilizar o sistema decisório cerebral racional chamado de “sistema 2” por Kahnemann.

O que pode ser feito para reduzir a judicialização de demandas na área da saúde, que vem crescendo de forma exponencial nos últimos anos?

Temos de investir em plataformas digitais de solução de disputas, como o site consumidor.gov.br, administrado pela SENACON/MJ, e também em métodos multiportas ou adequados de solução de disputas, como mediação e arbitragem. O judiciário deve ser a última instância de solução de disputas. Também devemos incentivar empre- sas a desenvolverem seu canal próprio de reclamações de consumidores. Há casos interessantes como o site eBay, que tem sua ferramenta de solução de controvérsias. Tec- nologia afetará muito o mercado jurídico. E teremos tam- bém de mapear algum nível de litigância predatória, que, ainda que minoritário, existe e precisa ser combatido, por vezes, com ou sem razão, qualificada como “indústria do dano moral”. Alguns litigantes, inclusive empresas, podem estar utilizando ou mesmo se valendo estrategicamente da demora judicial para deixar de respeitar espontanea- mente a legislação consumerista. Nos EUA, fornecedores já se deram conta que um bom canal de diálogo com con- sumidor é fundamental para os negócios. Manter o consu- midor e dar a ele uma boa experiência, inclusive no canal de reclamação, é fundamental para a sobrevivência num mundo competitivo. E, finalmente, temos de atualizar os currículos das faculdades de direito, a fim de que alunos estudem mediação, arbitragem, economia, contabilidade e aprendam, como qualquer outro profissional do mun- do corporativo, a fazer conta. Não podemos mais viver no Brasil como se não houvesse amanhã. O mesmo discurso sobre a reforma da previdência, vale aqui.

Como a judicialização excessiva influiu na desorganização e desarranjo do setor de planos de saúde?

É matemático. Planos de saúde são baseados em cálcu- los estatísticos de incidências, os sinistros, e decisões são tomadas baseadas na regulação do setor. Se o judiciário não tem deferência pela decisão do regulador e se vale de princípios muito abstratos para decidir, fica difícil ter previsibilidade e incorporar o custo das decisões judiciais no preço. De outro lado, como não existem preceden- tes seguros, fica difícil da própria agência reguladora se adequar aos ditames do poder judiciário. Assim, apenas grandes agentes econômicos conseguem sobreviver nesse ambiente, dada sua maior capacidade de absorver os im- pactos desse cenário incerto. São pouco concorrentes e isso não é benéfico ao consumidor, que fica em situação de maior vulnerabilidade e menor poder de barganha.

Como o senhor enxerga a criação de planos de saúde mais baratos e, portanto, com coberturas mais restritas?

De novo, como regra, quanto mais liberdade, melhor, em uma sociedade. Se o sistema privado puder, com controle de qualidade, atender parte da demanda que iria ao Sis- tema Único de Saúde, todos saem ganhando, inclusive os mais pobres. No Brasil, ainda estamos aprendendo a conviver com uma economia de mercado. Não que ela seja perfeita, mas a alternativa a ela se mostrou pior. Cla- ro, isso não significa que não se devam regular mercados, até porque no Brasil eles ainda são muito concentrados. O processo é gradual. Mas a regulação deve ser racional, baseada em evidências. Devemos estar abertos para inova- ções, com os devidos cuidados que a saúde do consumidor merece, mas sempre pensando no todo, na macrojustiça e não apenas na microjustiça do caso concreto.

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