Especialista em envelhecimento, Alexandre Kalache diz como o sistema de saúde do Brasil deve se preparar para a revolução demográfica em curso
Alexandre Kalache é o protótipo do idoso do futuro. Aos 72 anos, esse carioca da gema transborda energia e jovialidade, fatores necessários para cumprir uma agenda profissional que o leva aos quatro cantos do mundo, como professor universitário e ativista. Kalache se formou em medicina em 1970 e alguns anos depois rumou a Londres para fazer um mestrado em saúde pública. Na cidade que hoje considera uma de suas casas – as outras são o Rio de Janeiro e Granada, na Espanha –, ele passou a estudar a revolução demográfica e epidemiológica, fenômeno vivido pela Inglaterra de então e pelo Brasil atual. De lá para cá, Kalache se tornou um dos maiores especialistas do mundo em políticas de saúde e envelhecimento e chefiou por 13 anos o programa da Organização Mundial da Saúde (OMS) nessa área. Atualmente, além de dar aulas em universidades de diferentes países, ele é um dos apresentadores do programa de rádio 50 Mais CBN, preside o think tank Centro Internacional de Longevidade Brasil e é embaixador da HelpAge International, organização não-governamental de promoção da dignidade na velhice. Ele também ainda luta por um sonho: que a Organização das Nações Unidas (ONU) crie uma convenção internacional de direitos dos idosos. Na entrevista a seguir, Kalache explica o tamanho do desafio que o Brasil tem pela frente para cuidar dos seus idosos, para que sejam tão ativos e felizes como ele é.
VISÃO SAÚDE – Como vivem os idosos brasileiros hoje? ALEXANDRE KALACHE – Depende de qual Brasil estamos falando. Um trilhão e seiscentos bilhões de reais estão hoje nas mãos de brasileiros com mais de 50 anos. Existem hoje no país pessoas que estão envelhecendo melhor que nunca, que têm acessos a serviços, que tiveram um lastro financeiro. Elas acumularam os quatro capitais que são importantes para o bem envelhecer: capital de saúde, capital de conhecimento, capital social e capital financeiro. Mas a gente tem uma par- cela grande da população que está envelhecendo na miséria. Sem um teto na cabeça, comida na mesa e um mínimo de recursos para comprar os remédios que precisam. Então, o Brasil, por um lado, está envelhecendo bem; por outro, muito mal. Apesar de tudo, continuamos em um caminho inexorá- vel de envelhecimento, são três meses a mais de expectativa de vida a cada ano que passa. O número de idosos vai pular de 30 milhões, hoje, para 64 milhões em 2050 e 84 milhões em 2065, quando serão 34% da população.
Nosso sistema de saúde está preparado para esse cenário? Claramente, não. Os países desenvolvidos primeiro enriquece- ram, para depois envelhecer. E o Brasil está na contramão. É uma situação calamitosa, em que estamos vivendo uma tran- sição demográfica e epidemiológica, em que se muda o perfil das doenças, sem termos atingido o desenvolvimento como país. Quando se tinha uma população mais jovem, como há 40, 50 anos, havia predomínio de doenças infecciosas. Hoje ainda temos 14% das mortes no Brasil por esse motivo, além de 12% causados por violência, com 64 mil assassinatos e 70 mil desaparecimentos por ano. Mas como a população está enve- lhecendo, o restante das mortes já é decorrente de doenças crônicas, como hipertensão, diabetes, Doença de Alzheimer e outras. Isto é, ao longo do tempo, a ocorrência de doenças no Brasil mudou do agudo para o crônico. Mas o cuidado não mudou. E em resposta à revolução da longevidade é preciso que a gente evolua a cultura de cuidado.
Como essa evolução deve acontecer, especialmente no cuidado com os idosos?
Um aspecto que eu gostaria muito de chamar a atenção é o despreparo dos profissionais da saúde. Nós estamos formando profissionais preparados para o século XX, um contexto de al- tas taxas de mortalidade infantil e doenças infecciosas. Quem está se formando em medicina hoje não aprende nada sobre envelhecimento. Não é só a questão de se formarem geria- tras. Todos os profissionais da saúde precisam estar mais fa-
miliarizados e conhecedores do processo de envelhecimento em todos seus domínios, que vão da anatomia, fisiologia, far- macologia, dosagem de medicamentos, interação entre eles, apresentação de doenças. Quando se tem infecção urinária aos 40 anos, os sintomas são diferentes de uma pessoa de 80, 90 anos, em que muitas vezes essa infecção se manifesta em distúrbios de comportamento. Se você não aprendeu isso, vai fazer besteira. Pode intoxicar o paciente com antidepressivos. Muitas vezes uma pessoa que tem infarto de miocárdio aos 90 anos não sente dor. Tem outros sinais e pode entrar em falência cardíaca e morrer porque não foi diagnosticada e tra- tada. Eu digo para os estudantes de medicina quando tenho a oportunidade: “vocês vão matar pacientes na santa ignorân- cia, sem sequer perceber o que estão fazendo”.
O envelhecimento deveria entrar no currículo universitário de medicina?
Com certeza. Quando eu ainda estava na OMS, eu tentei juntar os ministérios da Saúde e da Educação em uma refor- ma do currículo médico para formar profissionais da saúde para o século XXI. Isso foi há mais de dez anos, e eu volto recorrentemente a essa questão. O que está sendo feito no Brasil é totalmente irresponsável. Abrindo-se mais faculda- des, que estão inadequadas, não equipadas, com quadros docentes muitas vezes ignorantes, não só em relação ao en- velhecimento, mas sobretudo em relação a isso, porque não percebem sua importância e vão empurrando com a barriga. E como os profissionais não foram preparados para atender os mais idosos, eles acabam negligenciando, porque é impos- sível gostar daquilo que você não conhece. Você passa a re- jeitar. Então, os estudantes de medicina de hoje têm de estar mais familiarizados com os idosos. Pode-se fazer, por exem- plo, o que fazíamos na Inglaterra e ainda se faz em muitas fa- culdades de lá: quando o curso começa você é apresentado a um grupo de seis idosos e os acompanha pelos seis anos. Não são pacientes idosos, mas sim pessoas que se tornam amigas.
Como preparar o sistema para prevenir doenças crônicas?
No Brasil, hoje, 90% das mortes de idosos são por doenças crô- nicas. Existem quatro fatores importantes para preveni-las: boa dieta, atividade física, uso moderado de álcool e evitar o fumo. Controlando esses quatro fatores de risco, tem-se um impacto enorme na mortalidade por doenças crônicas. Você consegue postergar as mortes e ganhar anos com qualidade de vida. Isso faz diferença para a pessoa e para quem está pagando pela assistência médica. Se você concentra as mortes na velhice,
obviamente há uma concentração de gastos em pessoas mais idosas. Esse é um detalhe muito importante, porque é muito mais barato morrer aos 90 anos do que aos 60. Isso é compro- vado em estudos de vários países. Primeiro porque as medidas heroicas, que custam muito caro, incluindo grandes investi- gações ou tratamentos muito sofisticados, não serão feitas em um paciente com 90 anos. A outra razão é que aos 90 todos os sistemas estão mais fragilizados. Então, quando há uma falên- cia dos órgãos a morte é mais rápida.
Qual é a importância do geriatra e do médico generalista no cuidado aos idosos?
O geriatra é um médico generalista treinado pra lidar com a pessoa idosa na sua essência física, social e mental como um todo. Em Londres, onde eu vivi boa parte da minha vida, há um médico de família que é a porta de entrada para o atendi- mento especializado. E muitas vezes ele te acompanha desde a infância. O treinamento dado a ele é a atenção primária à saúde, porque 90% dos problemas de saúde que uma pessoa tem podem ser tratados na comunidade sem institucionaliza- ção, que é muito cara. E dar conta da maioria dos problemas por um custo imensamente menor. Isso explica porque os países da Europa que apostam na atenção primária gastam metade daquilo que os EUA gastam. Mas estamos copiando o modelo errado, o modelo americano, até por imposição de consultores que vêm pro Brasil para impor regras com base em um modelo falido, que não tem limite, é superinvestigado, su- perinstitucionalizado e no qual as pessoas morrem mais cedo.
Como o geriatra bem treinado evita isso?
Uma das funções primordiais do geriatra é retirar medica- mentos. Há coquetéis incríveis de idosos tomando 10, 15 medicamentos por dia, muitas vezes porque foi a diferentes especialistas e cada um deles passou um medicamento. Faz uma salada que acaba matando. O bom geriatra presta aten- ção nessa combinação. Exemplo: você pode estar tomando um remédio para refluxo no esôfago e esse remédio causa um tremor na mão. Vem o outro médico e acha que esse tremor é Parkinson, aí medica doença. Segunda coisa é que o bra- sileiro é indisciplinado e faz automedicação. E tem muitas farmácias procurando fazer lucro, competindo entre si. Exis- te esse hábito de apanhar nas estantes os medicamentos e suplementos vitamínicos, que em geral não são necessários se tiver uma dieta bem equilibrada e balanceada. E muitas vezes esses suplementos dão efeitos colaterais que estão te prejudicando em vez de ajudar, além de aumentar o risco de determinadas doenças. Eu não tomo nenhum suplemento. Isso passa por uma questão de o médico estar bem preparado e não ter medo de ser levado à justiça, ser processado porque não diagnosticou, não tratou direito. Para se sentirem seguros, vão metendo um monte de exames que não são necessários, de ressonâncias magnéticas, coisas que raramente você vai ver na Inglaterra, por exemplo, e que aqui é corriqueiro.
A tecnologia de informação pode melhorar o atendimento aos idosos?
A minha geração ainda não lida bem com a tecnologia, mas é uma questão de corte, de geração. O idoso de amanhã, que tem 50 anos hoje, está muito mais familiarizado com o uso dessa tecnologia e vai tirar de letra daqui a pouco. Recente- mente, eu ainda estava fora do país e a cuidadora da minha mãe ligou para mim e disse que havia aparecido uma man- cha na perna da minha mãe, tirou uma foto e mandou para a dermatologista dela, que disse que era herpes zoster. Ela automaticamente já prescreveu um tratamento. Isso evitou que a minha mãe se deslocasse até o consultório, ela já está muito fragilizada, e evitou também o custo de uma visita da dermatologista em casa. Você está economizando tempo, evi- ta o deslocamento, faz tudo muito mais rápido, não precisa esperar a consulta com o especialista e permite que os profis- sionais de saúde se dediquem cada vez mais para a conversa, para aquilo que é a qualidade humana. Os planos de saúde têm de perceber que a ênfase maior tem de ser no cuidar, e não na cura, e envolver o cuidador ou cuidadora para que ele participe da interação. Essa pessoa precisa de informação, precisa se sentir prestigiada, para que ela possa dar o retorno. Isso faz parte da atenção integral.
O que o senhor espera do seu plano de saúde?
Primeiro de tudo quero ser respeitado. Quero ser mais ativo na relação com o médico, quero entender o que acontece, não quero prescrições ou pedidos de exames sem que eu esteja in- teirado. Não quero sigilo médico, cochichos por trás de mim. Mesmo que seja pra enfrentar uma realidade dura, eu quero participar desse processo de diagnóstico e de decisões. Eu não quero ser passivo no sentido de que coisas que não desejo que aconteçam se tornem realidade. Não quero ir parar no CTI, ter tubos colocados em mim mesmo depois de eu deixar claro que não é o que eu quero. Eu quero ser um agente ativo e empoderado no processo. Eu tenho muita informação e isso tudo acaba se refletindo nas minhas exigências sobre o siste- ma de saúde, seja ele público ou privado.