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Medicina demais

Líder do movimento slow medicine, italiano Marco Bobbio ficou conhecido pelas críticas aos excessos e à manipulação de dados da medicina atual

O cardiologista italiano Marco Bobbio, especialista em estatística médica, professor universitário e um dos principais nomes de transplante de coração no seu país, é também um crítico contundente da rapidez, da impessoalidade e dos desperdícios da medicina praticada atualmente no mundo ocidental. Filho do famoso filósofo Norberto Bobbio, Marco escreveu 11 livros nas últimas duas décadas, a maioria deles com reflexões importantes sobre a “indução de necessidades” em pacientes, em sistema que inclui manipulação de dados de pesquisas científicas, invenção de novas “doenças” e prescrição excessiva de exames e medicamentos. Em 2014, ao divulgar seu único livro lançado no Brasil, O Doente Imaginado (Bamboo Editorial), Bobbio trouxe ao país os princípios da slow medicine [“medicina lenta”, em tradução livre], movimento que prega a necessidade de desaceleração na assistência à saúde, com maior ênfase na individualização do cuidado, na autonomia do paciente, no autocuidado e na prioridade da qualidade de vida sobre a medicação e o tratamento. Nesta entrevista, Bobbio resume os principais aspectos de sua obra e recomenda que os pacientes sejam mais “pacientes” ao buscar soluções para seus problemas de saúde.

FOTO: ELENA TUBARO

Visão Saúde – O aumento da expectativa de vida na maioria dos países, nas últimas décadas, é resultado direto de evolução equivalente da medicina?

MARCO BOBBIO – Como demonstrado por vários pesquisadores, o aumento da expectativa de vida no último século foi principalmente devido à melhoria da qualidade de vida (água limpa, casas confortáveis, comida suficiente) e menos importante pelo progresso da medicina.

Qual é a escala dos impactos dos interesses econômicos no exercício da medicina e como podemos minimizá-los?

O conflito de interesse na medicina é bem conhecido e influencia todo o caminho do desenvolvimento de um produto: desde a escolha da doença a se estudar, até a definição de protocolos de pesquisa, a condução dela, a publicação de resultados, a pressão sobre publicações científicas e sobre médicos, com diferentes tipos de pro- paganda e gratificações. Os interesses econômicos in- fluenciam fortemente cada passo dessa cadeia, de modo que, na verdade, fica difícil compreender a magnitude da eficácia de um novo tratamento ou dispositivo.

Não existem dados que apoiem a utilidade dos checkups anuais. Sempre que os pesquisadores compararam a incidência de doenças ou eventos adversos entre grupos de pessoas submetidas ou não a verificações anuais, nenhuma diferença entre os dois grupos foi demonstrada

No Brasil, muitos acreditam que devem fazer checkups semestrais ou anuais. Isso é aconselhável, sob o ponto de vista médico?

Não existem dados que apoiem a utilidade dos checkups anuais. Sempre que os pesquisadores compararam a in- cidência de doenças ou eventos adversos entre grupos de pessoas submetidas ou não a verificações anuais, ne- nhuma diferença entre os dois grupos foi demonstrada. Fazer verificações periódicas é um desperdício de tempo e dinheiro com a ilusão de evitar qualquer doença.

A incorporação de novas tecnologias pode ter consequências nocivas para os cuidados de saúde? A contribuição da tecnologia para estudar e tratar doen- ças alcançou um desenvolvimento incrível nas últimas décadas. Mas, na verdade, com a disponibilidade de várias opções não estudadas por pesquisas independen- tes, com rigor, o risco de se usarem tecnologias úteis por razões inúteis está aumentando. É uma questão de des- perdício de recursos, porque testes desnecessários criam mais ansiedade e a necessidade de novas investigações também desnecessárias. A tecnologia não é boa nem ruim em si mesma. É a forma com que é usada que a torna benéfica ou perigosa.

E a telemedicina pode comprometer a relação entre médicos e pacientes ou pode ser benéfica se bem usada?

Como eu disse antes, a tecnologia não é boa nem ruim em si mesma. A telemedicina pode ajudar pacientes frá- geis a serem acompanhados em casa, particularmente em um país como o Brasil, onde às vezes as distâncias são enormes, em vez de ir em um hospital longe de casa. Mas a telemedicina também pode ser usada para au- mentar o número de tratamentos desnecessários ou para expandir o número de procedimentos sem qualquer co- nexão pessoa a pessoa.E a superespecialização da medicina traz benefícios? A superespecialização é essencial para compreender e tratar doenças raras; precisamos de neurocirurgiões especializados para intervenções específicas; imuno

logistas especializados para tratar doenças autoimunes complexas. O outro lado da moeda é que um superespe- cialista tende a se concentrar apenas no que ele conhe- ce (bastante sobre um assunto muito pequeno) e não é capaz de colocar o problema do paciente no contexto de sua vida inteira. Sem dúvida, o superespecialista con- centra sua atenção na doença mais do que no paciente. Os superespecialistas podem ser muito úteis, mas devem ser usados somente quando necessário.

Quais são os sinais e impactos da supermedicação no mundo de hoje?

A supermedicação leva ao crescente número dos chamados worried wells: pessoas saudáveis que gastam tempo e dinheiro para fazer checkups, consultando médicos e superespecialistas, lotando prontos-socorros, comprando remédios e ervas medicinais. Em outras palavras, enfocando o medo de uma doença em vez de viver de forma sossegada.

Como a slow medicine pode ajudar a resgatar a essência da medicina?

Os princípios da slow medicine são promover “uma medicina sóbria”, respeitosa (valores, expectativas e desejos das pessoas são diferentes e invioláveis) e justa (cuidados adequados e de boa qualidade para todos). Deveria ser supérfluo adicionar o adjetivo slow, pois estamos falando basicamente de uma boa medicina. Infelizmente, hoje a medicina é rápida, de modo que precisamos adicionar o adjetivo lento para explicar o que devemos evitar. Nos cuidados de saúde, estamos nos tornando reféns do conceito de eficiência que re- sulta em enormes desperdícios: a realização de exames desnecessários e a ingestão de medicamentos desneces- sários, com possíveis efeitos colaterais desnecessários.

A slow medicine pode contribuir para o tratamento de doenças crônicas e para a medicina preventivas?

A slow medicine oferece um novo paradigma para melhor aproveitar os recursos tecnológicos e medica- mentos que temos. Além disso, de acordo com essa filosofia, é importante que todos aprendam a cultivar sua própria saúde. Para prevenir a doença é mais im- portante mudar a direção para um estilo de vida sau- dável do que verificar periodicamente o corpo para procurar algo errado.

Os princípios da slow medicine são promover “uma medicina sóbria”, respeitosa (valores, expectativas e desejos das pessoas são diferentes e invioláveis) e justa (cuidados adequados e de boa qualidade para todos). Deveria ser supérfluo adicionar o adjetivo slow, pois estamos falando basicamente de uma boa medicina.”

Qual é o papel do paciente para promover as mudanças necessárias nos cuidados de saúde? Em primeiro lugar, os pacientes precisam entender que fazer mais não significa fazer melhor. Às vezes, os tratamentos levam a efeitos colaterais que são piores que os sintomas que deveriam ser tratados. Em segun- do lugar, eles devem abandonar a ideia de que algo novo (um medicamento, um exame, um dispositivo médico) é sempre melhor; temos dezenas de pesqui- sas que demonstram que alguns tratamentos antigos eram melhores que alguns novos. Em terceiro lugar, os pacientes não devem esperar a cura o mais rapida- mente possível. O corpo possui mecanismos fortes de autocura que são retardados por medicamentos; seria melhor ser “paciente” ajudando o corpo a se curar.

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