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Jornada de qualidade

Em passagem pelo Brasil, a executiva Barbara Crawford fala sobre as premissas que levaram a Kaiser Permanente a ser referência mundial em qualidade de assistência médica

Quando se fala em assistência à saúde de qualidade nos EUA, necessariamente se menciona o Kaiser Permanente, grupo empresarial que se notabilizou por seu modelo integrado de atuação, por meio do qual opera 39 hospitais e 677 clínicas médicas, emprega mais de 21 mil médicos assalariados e atende a 11,8 milhões de beneficiários de seus planos de saúde. A empresa está entre as melhores nos principais rankings de qualidade de assistência médica daquele país e, ao mesmo tempo que encampou uma jornada de melhoria contínua de seus serviços, teve quase 50% de aumento em seu faturamento desde 2010, alcançando receitas de US$ 64,6 bilhões em 2017. Em passagem por São Paulo, onde participou do 22º Congresso Abramge e do 13º Congresso Sinog, a vice–presidente de qualidade e excelência da Kaiser Permanente no norte da Califórnia, Barbara Crawford, falou a Visão Saúde sobre os principais aspectos que diferenciam a atuação da empresa de seus concorrentes. Para ela, qualidade em serviços de saúde está associada a queda de custos, e o Brasil tem na ausência de dados confiáveis um entrave para a evolução de seu sistema.

Foto: Ricardo Mansho

Visão saúde – O que define qualidade em um plano de saúde?

BArBArA CrAwford – Para se ter um plano de saúde de alta qualidade, o ponto de partida é colocar os beneficiários no centro de sua operação, que deve ser concebida para melhorar a experiência e a assistência à saúde desses beneficiários. os clientes vão dizer a você o que precisa mudar. Um aspecto muito importante é reduzir a variação no atendimento prestado nos diversos locais, para que a assistência seja sempre a mesma todas as vezes em que o beneficiário bata à sua porta. Um plano de saúde que não estiver focado em qualidade, atualmente, está fadado a falhar. Mas a qualidade é uma jornada, não acontece da noite para o dia. Leva anos. Na Kaiser Permanente, estamos há dez anos nessa jor- nada e continuamos a procurar onde mais precisamos melhorar.

por onde vocês começaram essa jornada?

Uma das primeiras coisas que fizemos foi olhar profun- damente para nossos hospitais. Identificamos os prin- cipais eventos ocorridos nos hospitais, como infecções adquiridas no estabelecimento, objetos esquecidos no corpo do paciente, em cirurgias, e acidentes de traba- lho. A partir daí, perguntamo-nos o que poderia ter sido feito para evitá-los. formamos conselhos consultivos de pacientes para nos trazer esses problemas e nos ajudar a melhorar. outra coisa que fizemos que se mostrou mui- to impactante foi a implantação de um sistema integra- do de operações, o que nos permitiu reduzir a variação entre as práticas dos médicos e hospitais.

A premissa é de que nossos beneficiários tenham a mesma qualidade de assistência nos nossos 21 hospitais. Para fazer isso, tivemos de padronizar nossos processos.

Para fazer isso, tivemos de padronizar nossos processos. Uma variação pode existir, por exemplo, por causa do layout físico de um hospital, requerendo adaptações. Mas, em geral, o pacote principal de processos deve ser bem padroniza- do. Isso é importante para o paciente, que passa a ter o mesmo cuidado, aqui e lá, e pode antever como será atendido. E também é importante do ponto de vista clínico, para que o médico consiga enxergar o que fun- ciona melhor.

É possível melhorar a qualidade da assistência à saúde sem aumentar custos?

Com certeza. Um bom programa de qualidade au- tomaticamente irá diminuir os custos. Na Kaiser Permanente, por exemplo, projetamos economizar 176 milhões de dólares, em um ano, como conse- quência dos projetos de qualidade nos quais minha área está trabalhando neste momento. Isso será atingido com o aumento da qualidade da nossa as- sistência à saúde. Temos um programa específico para reduzir os índices de pneumonias associadas ao ambiente hospitalar, pois cada paciente que con- trai pneumonia no hospital fica, em média, 21 dias a mais internado, a um custo extra de 2.500 dólares por dia. Como somos um sistema de pré-pagamento, não recebemos nada a mais por isso. Então eu sei que se reduzirmos os índices de pneumonia origi- nada no hospital, economizaremos muito. E é assim que a qualidade melhora a gestão de custos. Pode até demorar um pouco, mas o retorno virá.

Então a medicina preventiva também é importante nesse contexto?

Prevenção tem a ver com vidas mais longas e com qualidade. E prevenindo doenças relevantes, também reduzimos custos. Então, se uma pessoa com diabetes se junta a Kaiser Permanente, nós a acompanhamos sistematicamente, de diversas formas. Há uma equipe de suporte aos médicos, incluindo educadores espe- cialistas em diabetes, gestores de qualidade de vida, farmacêuticos. Não se pode esperar que os médicos

façam tudo, especialmente se eles tiverem um gran- de volume de pacientes. outro exemplo, foram nossos esforços para seguir as diretrizes do governo federal dos EUA no que se relaciona à prevenção de câncer de cólon em pessoas com mais de 50 anos de idade. fizemos uma campanha para receber pelo correio amostras fecais dos beneficiários dessa faixa etária, para que buscássemos sinais de sangue. Nos casos de resultado positivo, são agendados exames complemen- tares. Começamos esse trabalho há três anos, e ago- ra podemos ver que estamos conseguindo reduzir o número de casos mais avançados de câncer de cólon. os pacientes estão vivendo mais por causa disso. Tam- bém por causa dos nossos programas de medicina pre- ventiva, nos quais acompanhamos pressão arterial e colesterol, além dos incentivos à prática de exercícios físicos e do controle da dieta alimentar, um beneficiá- rio da Kaiser Permanente tem 30% menos chance de ter um ataque cardíaco.

Qual foi o papel da tecnologia nessa jornada de qualidade?

Para ser capaz de diagnosticar, de identificar em quais áreas eu devo começar, você precisa de big data [um conjunto extenso de dados analisados com o uso de in- teligência artificial], e foi assim que nós começamos. Ao analisar as causas de 50 mortes ocorridas, em um determinado período, em cada um de nossos 21 hos- pitais, conseguimos identificar que uma significativa parcela dessas mortes havia sido causada por infecções hospitalares. E foi aí que soubemos que tínhamos de começar a mudar.

Qual é o próximo passo na fronteira da tecnologia?

A análise preditiva. Poder prever o risco de readmissões nos hospitais, por exemplo. Agora, estamos nos movi- mentando para focar no paciente que teve alta do hos- pital, para, considerando todas as informações que te- mos sobre ele, determinar qual o risco de ele voltar para o hospital. Se ele tem um risco grande de readmissão, talvez possamos realizar uma abordagem diferente em seu acompanhamento pós-alta.

Um grande desafio é olhar para as mudanças demográficas e entender como fazer a gestão populacional da melhor forma, começando com programas preventivos

Quais são suas impressões sobre o sistema de saúde do Brasil?

Uma coisa que eu acho que o Brasil tem de começar a re- solver urgentemente é ter bons dados e poder, assim, medir o desempenho dos hospitais. Em São Paulo, vocês têm os hospitais libanês e o judaico, que têm a reputação de serem os melhores. Então me diga: o que faz deles os melhores? reputação. Mas você precisa de números, dados, que de- vem fazer parte de todos os hospitais. Quais são os índices de cesáreas? Esse índice é medido da mesma forma em todos os hospitais? Quais são suas taxas de infecção hospi- talar? Qual é sua taxa de mortalidade? Podemos começar por aí para engajar os hospitais a melhorarem.

globalmente, quais são os principais desafios para o futuro dos sistemas de saúde?

Eu acho que um grande desafio é olhar para as mudan- ças demográficas e entender como fazer a gestão popu- lacional da melhor forma, começando com programas preventivos. outro desafio é usar sabiamente os dados, permitindo o acesso fácil ao histórico médico dos pacien- tes por meio dos prontuários eletrônicos. Não podemos avançar sem isso. E depois existem as novas tecnologias, para as quais sempre há um apetite. Quando eu come- cei na enfermaria, era raro que bebês nascidos com 26 semanas sobrevivessem. Agora nós vemos bebês que nas- cem com 22 semanas e que conseguem sobreviver. Eles podem ter condições crônicas e precisarem de cuidado especial a vida inteira por causa disso. Então, eu acho que temos meios para salvar vidas, mas também temos de nos focar na qualidade de vida. Temos de ajudar os pacientes a tomar boas decisões relacionadas às tecnologias dispo- níveis e seus impactos na qualidade de vida.

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