Paulo Furquim, economista e professor do Insper, fala sobre as mudanças que podem tornar o sistema de saúde brasileiro mais racional e eficiente que podemtornar o sistema desaúde brasileiro mais racional eeficiente
O economista Paulo Furquim dedicou uma parte considerável de sua carreira à área de regulação e concorrência. No meio acadêmico e no ambiente empresarial, estudou a relação entre o Estado e o setor privado para entender o modo como as corporações concorrem e o tipo de regras a que são submetidas. Nessa área, desenvolveu trabalhos sobre o sis- tema de saúde e outros setores essenciais para o desenvolvimento socioeconômico do país. Durante quatro anos, como conselheiro do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), ele imergiu nas questões da saúde ao participar de diversos casos envolvendo as relações entre cooperativas de médicos, hospitais e outros atores do sistema. Até que a vida acadêmica o levou para a sala de aula. Hoje no Insper, Furquim dá aula de regulação e defesa da concorrência na graduação. No mestra- do, fala sobre estratégia competitiva, com foco maior no ambiente empresarial. E, no doutorado, ministra em inglês uma aula chamada Institutional Environment, na qual aborda “as regras do jogo”. Ele explica: “De modo bem abrangente, a aula explora a seguinte questão: como as regras do jogo influenciam o desenvolvimento de um país”. Respostas? É sobre isso que ele fala na entrevista a seguir.
VISÃO SAÚDE – Cerca de 75% dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS e os 48 milhões restantes têm acesso a algum plano de saúde médico-hospitalar. É possível que os sistemas público e privado coexistam de forma racional e eficiente?
Paulo Furquim – A existência dos dois sistemas pare- ce uma solução adequada para a estrutura da sociedade brasileira, que é bastante desigual e relativamente pobre em termos de renda média. Nesse sentido, foi um sucesso o SuS conseguir a universalidade da assistência à saúde, o que é muito raro para um país com os nossos indica- dores e uma população que demanda por serviços de maior qualidade. Ao mesmo tempo, existe um grupo de prestadores de serviços de saúde no setor privado aptos a cumprir esse papel, por isso acho absolutamente razoável a convivência entre os dois sistemas. mas é fato também que há uma série de elementos que podem ser aprofun- dados na relação entre os setores público e privado.
Quais seriam esses elementos?
Na saúde suplementar, um eixo fundamental é a mudança das relações de contratação entre beneficiários, planos de saúde e prestadores de serviços. Hoje, o modelo de contra- tação induz ao desperdício e, em algumas situações extre- mas, premia o mau comportamento no meio médico, um comportamento deplorável de indivíduos que têm lucrado com a ignorância alheia, inclusive prejudicando a saúde do beneficiário. Outro eixo importante é o empoderamento do consumidor, ou seja, oferecer informação e capacidade de escolha para o beneficiário, mas também dar a ele uma pequena parte do ônus por meio dos modelos de copartici- pação. Existe ainda um terceiro eixo que é a relação com o judiciário, um ator que desempenha um papel muito importante no setor. Atualmente, o judiciário tem uma participação tão intensa na saúde que acaba determinan- do alocações relevantes dos recursos, tanto no SuS quanto na saúde suplementar. A judicialização explica parte da elevação de custos do sistema, que são, em última análise, repassadas para os beneficiários e contribuintes.
Quando o senhor fala em mudanças no modelo de remuneração dos serviços de saúde, quais são as alternativas mais adequadas para o contexto brasileiro?
Esse é um arranjo complexo, em que você precisa com- binar diferentes formas de pagamento pelos serviços. Uma boa referência para o Brasil é o DRG (Diagnosis Related Group) europeu, de países como a Suécia e a Inglaterra, que estabelece um preço fixo para o grupo de procedimentos em que se tem uma predição razoá- vel do que vai acontecer. Olhe o caso do parto de uma mulher entre 20 e 35 anos, por exemplo. É possível saber com antecedência quais são as internações e necessida- des para atendê-la bem, e com isso estimar um valor para o serviço prestado. Dessa forma, o hospital inter- naliza o controle do processo e tem um incentivo para ser o mais eficiente possível. Porque ele tem condições muito melhores de fazer isso do que o beneficiário ou o próprio plano de saúde. Ele passa a ter o ônus do desper- dício e, com isso, vai controlar melhor a indicação de cirurgias desnecessárias e coisas do tipo.
Na saúde suplementar, um eixo fundamental é a mudança das relações de contratação entre beneficiários, planos de saúde e prestadores de serviços. Hoje, o modelo de contratação induz ao desperdício e premia o mau comportamento no meio médico
Que outras características o senhor destacaria no DRG? Na base de tudo, você tem um sistema de informação que permite que se saiba mais de cada indivíduo que re- corre ao sistema de saúde. Isso possibilita que o médico acesse o histórico de saúde do paciente na hora da con- sulta, como se fosse um prontuário único da pessoa. A qualidade do diagnóstico aumentaria muito com isso e a prescrição de exames iria no sentido inverso, ajudando também a tornar o sistema mais eficiente.
No curto prazo, qual deve ser a prioridade do setor para resolver o problema do financiamento?
No curtíssimo prazo, nós temos um grande problema e aí eu tenho uma resposta que pode ser polêmica. A saúde suplementar tem um papel relevantíssimo no provimento do serviço de saúde, mas perdeu beneficiários por inca- pacidade de pagamento e por causa do desemprego. No SuS, a crise econômica reduziu substancialmente os re- cursos, ao mesmo tempo em que a demanda pelo serviço aumentou. Se a gente junta essas duas coisas, a conta não fecha. Isso tudo para colocar a conclusão, triste e inesca- pável, de que, no curtíssimo prazo, vejo com bons olhos a volta de um imposto que seja específico e provisório para a saúde. Vivemos uma situação de crise, é quase um esta- do de guerra. Por isso é muito importante que o imposto seja necessariamente provisório, caso entre em vigor. O número de processos judiciais na área de saúde cresceu significativamente nos últimos anos.
A judicialização explica parte da elevação de custos do sistema, que são, em última análise, repassadas para os beneficiários e contribuintes
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Como lidar com essa questão sem ferir o direito de acesso à saúde das pessoas?
O direito de acesso é algo indiscutível e inegociável. O problema está no modo como o juiz decide. Hoje eles decidem com uma ênfase muito grande no problema individual, em detrimento do problema coletivo. Preci- samos do judiciário para fazer cumprir os contratos, e isso é altamente em favor da organização do sistema de saúde. mas tem o lado ruim também, que é o ponto em que mesmo um juiz muito bem intencionado pode decidir em favor de um indivíduo e em prejuízo da so- ciedade. Esse efeito pode ser muito perverso e acabar beneficiando a parcela mais rica da população. Num país com a concentração de renda que nós temos, isso é grave. um poder como o judiciário ter um efeito regres- sivo dessa ordem é algo preocupante.
As fraudes e abusos também são problemas comuns no setor, como mostram alguns casos
recentes de superfaturamento na compra de materiais. Como combater esse tipo de problema?
Eliminar a fraude por completo só eliminando o cará- ter humano. É uma ficção. mas temos hoje um quadro absurdo, em que o mau comportamento é premiado, e o bom comportamento, punido. O que a gente precisa mexer é na regra desse jogo. Isso começa com coisas muito simples. A própria mudança no sistema de pa- gamento já teria um efeito de reduzir a ocorrência de fraudes. Hoje em dia, há hospitais que têm o seu lucro majoritário derivado da venda de materiais com preço inflado. Isso já gera uma distorção muito grande, porque quanto mais material o hospital vender, mais ele vai ga- nhar. Se você coloca um DRG funcionando bem, com um sistema de informação muito apurado, o incentivo do hospital será comprar o material da forma mais efi- ciente possível para reduzir os seus custos.