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Olhar Sistêmico

Entre os gabinetes da política e os corredores dos hospitais, Gonzalo Vecina Neto já trabalhou em diferentes setores da saúde pública – e ainda encontra tempo para dar aula sobre o assunto

Gonzalo Vecina Neto já esteve em muitos lados do balcão. Conhece os corredores de hospitais públicos e particulares, dá aula na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e já circulou pelos gabinetes das três esferas do governo executivo. No início dos anos 2000, foi presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, depois, secretário municipal da Saúde de São Paulo. Antes disso, já havia ocupado cargos importantes no Ministério da Saúde e na Secretaria de Estado da Saúde de São Pau- lo, onde atuou na divisão de fiscalização e na coordenadoria de assistência hospitalar. Em 2007, Vecina aceitou o convite para ser superintendente corporativo do hos- pital Sírio-Libanês, cargo que ocupou até o início de 2016. Como médico, ele acumula ainda uma experiência de mais de 20 anos de atendimento no Hospital das Clínicas de São Paulo, instituição em que chegou a desempenhar também algumas funções executivas. Hoje ele passa boa parte de seu tempo nas salas de aula da USP, falando sobre um tema que conhece como poucos. “Precisamos ter cuidado para não oferecer um sistema para o rico e outro para o pobre. A saúde tem de ser um instrumento de inclusão, e não o contrário”, ele diz. Leia a seguir os principais trechos da entrevista que concedeu à Visão Saúde.


Visão Saúde O Brasil vive hoje uma crise que ameaça reduzir os recursos do SUS, ao mesmo tempo que o desemprego e a queda da renda familiar dificultam o acesso aos planos de saúde. Como desatar esse e melhorar a assistência à população no curto prazo?

Gonzalo Vecina – Estruturalmente, temos dois grandes desafios para o sistema de saúde. Na área pública, há um problema grave de subfinanciamento e de políticas tributárias e fiscais. O Brasil gasta cerca de 9% do PIB em saúde, um índice semelhante ao de grande parte dos países europeus, mas nosso PIB per capita é cinco vezes menor que o da Inglaterra, por exemplo. Se você olhar

para o investimento em saúde, vai ver que 45% do gasto no Brasil é público, e o restante, privado. Quer dizer, te- mos de repensar a equação do financiamento. O segundo desafio crítico é a gestão, tanto no setor público como no privado. Embora você tenha algumas modalidades que avançaram nessa questão, como a medicina de grupo, ainda temos muitos desafios pela frente. Pensando no curto prazo, o recálculo da forma de pagamento do SUS, em tramitação no Congresso, significará uma redução de investimentos do governo federal da ordem de R$ 30 a 40 bilhões nos próximos anos. Isso vai ser um desastre.

Quais são os principais desafios na parte de gestão?

O nível de informatização dos hospitais é um deles. Hoje em dia não dá para você ter planilhas aqui e ali. É preciso integrar o conjunto de informações gerado no processo de atenção à saúde e contar com softwares que tenham capacidade de fazer essa integração desde a pro- moção da saúde até a reabilitação da doença. Mas nossos sistemas, inclusive uma parte do privado, estão voltados para o atendimento vertical, para o momento em que se vai ao hospital. Não estamos preparados para atender, de forma horizontal, quem é hipertenso, diabético, portador de câncer. Por isso temos de mexer no modelo de serviços de saúde. Precisamos de um modelo assistencial que não estimule os pacientes a procurar os hospitais.

Como isso funcionaria na prática?

A alternativa está naquilo que vem sendo chamado de gestão da clínica, um conjunto de componentes que aumentam a eficiência e a eficácia do processo de aten- ção. Na prática, isso significa criar sistemas de gestão de doenças e de doentes. Como os programas para hi- pertensos, por exemplo. Idosos hipertensos, cardiopatas, com reumatismo internam mais que outros pacientes e precisam de uma equipe que os acompanhe diariamen- te, alguém que ligue para eles para saber se tomaram o remédio, se precisam que alguém vá à casa deles, se se alimentaram adequadamente. Tudo isso custa, mas também evita custo. O problema todo é saber se o sis- tema de saúde está preparado para isso. E aí entra uma discussão que a sociedade brasileira ainda não enfren- tou: quão civilizados nós queremos ser? Em 2050, sere- mos mais ou menos civilizados?

Precisamos discutir uma questão que a sociedade brasileira ainda não enfrentou:

quão civilizados nós queremos ser? Em 2050, seremos mais ou menos civilizados?

De que forma os sistemas público e privado podem caminhar juntos e ampliar a assistência da população à saúde?

Precisamos ter cuidado para não gerar um desequilí- brio entre os dois setores e também para não oferecer um SUS excludente, um sistema para o rico e outro para o pobre. O grande problema do Brasil é a exclusão social, e a saúde tem de ser um instrumento de inclusão, não o contrário. Temos de garantir que os dois sistemas ofere- çam o que for necessário, partindo de um marco de ava- liação tecnológica, representado hoje pelo que estamos chamando de medicina baseada em evidências. O que ela diz que é eficaz e seguro deve ser oferecido nos dois sistemas. Em termos práticos, a alternativa é caminhar para um modelo em que se tenha uma oferta qualitativa e quantitativa adequada no SUS, e existente na iniciativa privada. E, eventualmente, negociar que alguns procedi- mentos de menor frequência e maior tecnologia possam ser feitos pelo SUS, com algum tipo de compensação fis- cal ou tributária. Por exemplo, transplante de fígado, de coração, casos mais complexos, só o setor público faria. Aquilo que for de média ou baixa complexidade, os pla- nos deveriam fazer. Essa é uma discussão importante da qual não estamos nem próximos.

Uma das principais sugestões para equilibrar

o sistema é a mudança no modelo de remuneração dos procedimentos médico-hospitalares. Quais são as melhores alternativas ao modelo atual? O modelo atual é um desastre. Pagamento por proce- dimento, o fee for service, estimula o consumo e, desse jei- to, a conta nunca vai fechar. A alternativa é olhar para o resultado, remunerando o que é feito para uma determi- nada população ou pagando por performance em relação aos resultados de um paciente. A possibilidade que tem sido mais aceita nesse sentido observa o resultado médio de um conjunto de diagnósticos, por exemplo. Não é tão complexo, mas tem um processo que precisa ser incorpo- rado ao sistema. As instituições privadas que aceitarem esse caminho vão ter de criar uma expertise para lidar com esses processos.

O custo assistencial aumenta em níveis maiores que a inflação geral, e o desperdício, as fraudes e os procedimentos desnecessários contribuem para isso. Como os gestores hospitalares devem combater esses problemas?

Precisamos melhorar muita coisa nos nossos hospi- tais, que têm taxas de ocupação relativamente baixas, próximas ou inferiores a 80%, quando tem de ser pelo menos 85%. Isso é fruto da desocupação do hospital no fim de semana, uma vez que os médicos não operam aos domingos e, eventualmente, aos sábados também não. Há de se estimular a realização de cirurgia pelo menos aos sábados, para se utilizar a estrutura que está lá de for- ma mais eficiente. Outra questão é o gasto com pessoal, um dos mais altos da cadeia de valor da saúde. Muitas vezes há pessoas não comprometidas com a atenção aos pacientes. Então precisa de mais engajamento, porque a gestão de pessoas é o nó mais crítico nos hospitais, pela característica da atividade. Outro grande desafio é de comunicação, é mostrar o que as pessoas devem fazer e quando fazer. Nesse processo, é fundamental a educação permanente, mas as organizações na área de saúde não têm essa cultura. Tem de existir formação contínua de todos os profissionais que estão ligados ao hospital, inclu- sive os terceirizados, que são muitos.

E no caso das fraudes?

Uma boa maneira de combater fraudes, de forma ge- ral, é adotar mecanismos de transparência. Qual a taxa de erros e de infecção nos hospitais, por exemplo? Isso tem de ser divulgado e auditado. Outra boa maneira é bus- car certificação, nacional ou internacional, e isso sempre tem um custo. Não se faz uma certificação de graça, mas isso traz um retorno importante para a organização, pois afirma que ela está andando na direção certa. Nas áreas mais sensíveis, como as próteses, tem de ter um cuidado especial. Ou seja, um novo procedimento só entra se for comprovada sua eficácia científica. A recusa ou escolha de determinado material tem de estar pautada por conhe- cimento, senão não vale, não pode ser aceita.

O senhor acredita que um movimento de consolidação de redes hospitalares é benéfico para o sistema?

Isso é importante, é uma tendência que veio para fi- car. Os hospitais vão comprar e capacitar melhor, e as evidências mostram isso. Podem ser criadas também re- des virtuais, com centros de compra compartilhados, por exemplo, que permitam melhores negociações. Equipa- mentos com oferta de ressonância nuclear conjuntas e lavanderias compartilhadas também seriam muito bené- ficos para o sistema.

Não estamos preparados para atender, de forma horizontal, quem é hipertenso, diabético, portador de câncer. Isso gera custo, mas também o evita

Qual é o papel da saúde suplementar nesse cenário?

Teremos de passar por uma evolução disruptiva e esta- belecer qual vai ser a relação entre o público e o privado. Hoje, o setor privado atende 25% da população, e quer fazer mais. O público também. Nunca teremos um siste- ma como o americano, porque não temos uma economia como a deles. E olha que eles oferecem uma assistência de baixa qualidade. Então, a saúde suplementar terá de ser capaz de se reformar disruptivamente, para continuar a ter seu próprio espaço.

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