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Projetar cenários financeiros na tempestade de incertezas

Raquel Marimon explica o papel do atuário, o profissional que vivencia esse desafio na saúde suplementar

A pandemia trouxe desafios adicionais para um mercado já bastante dinâmico, com cada vez menos previsibilidade. Consultora para operadoras de planos de saúde há mais de 20 anos, a atuária Raquel Marimon comenta nesta entrevista sobre o papel do profissional atuário e por que ele vem ganhando cada vez mais visibilidade.

Graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pós-graduação em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas, Raquel passou pela Universidade de Harvard no programa Líder Latam, onde estudou as mudanças nos Estados Unidos com a Lei Obama Care. Também esteve na Universidade de Oxford para compreender a essência e os impactos econômicos da prevenção e da atenção primária, assim como é aplicada pelo NHS, sistema britânico de saúde.

Atualmente diretora executiva da Funcional Health Tech, sendo responsável pela frente de Consultoria, diretora de saúde no Instituto Brasileiro de Atuária (IBA) e membro do Latin American Comitee da Society of Actuaries (SOA), a executiva divide com os leitores suas percepções sobre a gestão de riscos para as operadoras de saúde, novos modelos de remuneração, regulamentação e o momento da sociedade enquanto evolução da relação de consumo do plano de saúde privado.

Foto: divulgação

Como vê a função do atuário na dinâmica do plano de saúde em que cada vez mais é importante ser assertivo?

Pensando no universo de operadoras de saúde, o atuário tem um pilar forte de formação em matérias exatas, quan- titativas, estatística, matemática aplicada, que tem a fina- lidade específica de trabalhar com modelos preditivos. O segundo pilar que o atuário traz no conjunto da formação dele tem relação com o escopo regulatório. Não neces- sariamente o atuário vai sair da faculdade dominando a regulamentação, mas ele vê vários desses assuntos na faculdade, porque no mundo todo o atuário tradicional- mente atua em setores regulados. O terceiro pilar, que boa parte das universidades propicia, é a visão econômi- ca, de gestão de negócios, sobre o que gera resultados e valor. Então, ele já vem com esses três pilares mais estru- turados quando começa atuar na operação. Isso por si já é um diferencial, porque o trabalho analítico do atuário agrega valor à tomada de decisão. Vivemos num mundo em que as decisões são baseadas em dados e o atuário é muito bom em escolher que dados deve analisar para cada situação, justamente por conta desse conjunto de conhecimentos. Entretanto, nem todas as operadoras de saúde colocam o atuário nessa posição de destaque. Mui- tas veem no atuário um técnico, um calculista. Outras já identificam o potencial desses profissionais por sua formação multidisciplinar, ainda mais quando se soma a habilidades de comunicação. Um dos momentos em que o atuário costuma ser solicitado é na precificação dos planos de saúde, porque ele tem um conhecimento muito específico para isso. É um recurso muito estratégico para a operadora. No entanto, se ele for apenas um calculista, não estiver olhando para o mercado e para o contexto, formará preços que não são factíveis na realidade daque- la operadora. Outra frente de atuação do atuário é a de provisões, ou seja, o cálculo do quanto de recursos finan- ceiros a operadora precisa guardar para custear despesas que serão apresentadas a ela a posteriori. É uma função bem estratégica, pois pode impactar diretamente o resul- tado financeiro da companhia. É matemática, mas uma matemática avançada, em que pequenos ajustes podem trazer resultados completamente diferentes. Profissionais atuários bem-preparados e experientes certamente agre- garão valor à operadora de saúde.

O atuário é valorizado no Brasil hoje?

Quando a gente pensa em como as operadoras de saúde surgiram, como se desenvolveram e o que fez com que ganhassem cada vez mais espaço no mercado, original- mente a ciência do negócio estava na gestão financeira, por conta do contexto econômico do país nos anos 70 e 80. Neste sentido, o papel do atuário era menos im- portante. A partir da estabilidade da economia, em 1994, passa a ser mais relevante porque fica mais claro como deveria ser o processo de precificação do plano de saúde, por exemplo, que antes estava mesclado a outras questões financeiras. Mas, a essa altura, a cultura já estava instala- da, com profissionais especializados em gestão financei- ra, que é um trabalho importante, mas que deixa de lado aspectos importantes que um atuário poderia perceber. Vejo que, nos últimos cinco anos, o papel do atuário vem ganhando mais visibilidade, principalmente em razão das garantias financeiras exigidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), tanto as provisões, que afe- tam os resultados, quanto a parte de cálculo de capital.

Essa última exigência que citou é uma novidade?

Sim. O patrimônio líquido de uma operadora é definido pelo órgão regulador e não é um número exato. Até o ano passado, era um cálculo simplório. De 2020 para cá, quando foi apresentada a regra do capital baseado em ris- co, passa a ser uma fórmula de maior complexidade ma- temática e com outras variáveis. Então, o atuário se torna um profissional importante no acompanhamento dessa exigência, porque ele consegue mais rapidamente enxer- gar esses efeitos de longo prazo no resultado da compa- nhia. Ainda estamos num momento transitório, de adap- tação até 2023, quando será obrigatório o capital baseado em risco, mas o acompanhamento já é necessário desde agora porque essas serão as novas regras do mercado.

Quais as perspectivas dos maiores riscos do setor?

Por conta da pandemia, temos um cenário muito volátil. Não dá para saber hoje quais serão as sequelas da covid-19 daqui a cinco ou seis anos, nem prever a taxa de inci- dência dessa doença e quais serão os custos de eventuais tratamentos, pois vivemos um momento de profusão do desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Vejo isso como um risco no contexto das operadoras de planos de saúde e um grande desafio para os atuários de tentar en- contrar essas respostas econômicas para projetar os ce- nários diante de tantas incertezas. Existe uma discussão muito forte sobre cuidado integral da saúde, conectar os diversos atores do segmento para oferecer um cuidado coordenado. A prática da medicina está sendo repensada, muito impulsionada pelas operadoras de planos de saúde. Ao mesmo tempo, vemos um movimento de trazer essa discussão para modelos de remuneração, de comparti- lhar mais riscos com os prestadores de serviços de saúde.

Como seria o compartilhamento de riscos com os prestadores?

Hoje ainda prevalece em 90% das despesas assistenciais das operadoras o modelo fee for service, em que se paga um determinado valor para cada serviço prestado por um grupo de médicos, clínicas, laboratórios e hospitais. Nes- se modelo, a operadora tem 100% do risco. Se as pessoas ficam mais doentes ou menos doentes, é a operadora que vai pagar mais aos prestadores ou menos. Quando falamos em novos modelos de remuneração, a ideia é compartilhar parte desse risco com os prestadores de serviço. Mas muitas vezes os prestadores ainda não estão preparados para con- versar sobre essa nova lógica; não conhecem o risco nessa dimensão populacional. O prestador precisará repensar a forma de olhar para o seu negócio, porque ele pode passar a ser remunerado por manter a pessoa saudável. Vale res- saltar que existe um debate de escopo também que precisa ser conduzido. Essa intenção das operadoras de compar- tilhar os riscos assistenciais com os prestadores, que mui- tas vezes não estão preparados para isso, se confronta com a tendência de verticalização das operadoras. Se ela não encontra o parceiro ideal para compartilhar riscos, pode optar sim por verticalizar para ter um único interesse, que é promover a saúde das pessoas para que elas tenham um custo ajustado à manutenção do plano. Ainda pensando em riscos, temos um outro que vive nos rondando que é a inflação médica. Todo ano vemos os custos dos planos de saúde aumentarem mais do que a inflação geral. Isso é uma realidade no mundo todo. Claro que no início da pandemia, as pessoas deixaram de sair e de usar os serviços de saúde esperando um momento dois. Agora temos um pico de pandemia maior que em 2020, simultaneamente a uma explosão no número de exames preventivos e procedi- mentos eletivos. O risco imediato é não darmos conta em termos de estrutura de oferta de serviços em saúde, porque os recursos são finitos.

Quais os maiores desafios positivos que enxerga a curto, médio e longo prazos?

O principal desafio positivo tanto para o profissional atuá- rio quanto para o mercado de saúde suplementar hoje está muito calcado na gestão de risco, que é algo novo trazido como exigência regulatória desde 2019. Outro de- safio muito positivo é a atuação do atuário na discussão de novos modelos de remuneração. No lado das opera- doras, eles já têm um papel importante e já participam dessa discussão de forma muito ativa. Vejo um universo de oportunidades no lado do prestador, que não tem essa cultura de calcular risco, de olhar estrategicamente de que maneira pretende se posicionar nesse mercado. Esse caminho significa tirar o atuário da sua zona de conforto e levá-lo para atuar por outra óptica, considerar outros aspectos que até então não faziam parte do seu dia a dia.

“Hoje ainda prevalece em 90% das despesas assistenciais das operadoras o modelo fee for service, em que se paga um determinado valor para cada serviço prestado por um grupo de médicos, clínicas, laboratórios e hospitais. Nesse modelo, a operadora tem 100% do risco. Se as pessoas ficam mais doentes ou menos doentes, é a operadora que vai pagar mais aos prestadores ou menos. Quando falamos em novos modelos de remuneração, a ideia é compartilhar parte desse risco com os prestadores de serviço”

“Quando a gente olha para uma operadora que está 100% nesse modelo fee for service e que tem 100% da rede credenciada, de fato ela teve redução na despesa assistencial, na sinistralidade. Mas há operadoras que têm hospital próprio, que precisaram investir para ter novos leitos, contratar de última hora a peso de ouro profissionais, adquirir EPIs [equipamentos de proteção individual] também a peso de ouro por causa de um mercado internacional que elevou os preços. Tudo isso custa.”

Quanto aos reajustes de planos de saúde, qual a sua visão a respeito das propostas de suspensão que vez ou outra surgem na mídia e no Congresso?

Acompanhamos bem de perto primeiro o projeto de lei 1542, que propôs a suspensão de reajustes dos planos de saúde no primeiro semestre do ano passado e depois o movimento do próprio mercado de não aplicar reajuste em determinados casos, no contexto da pandemia. Em se- guida, veio a suspensão dos reajustes publicada pela ANS. Vejo essa medida como uma interferência em contratos particulares sem considerar o seu teor. Tudo o que se de- cide de forma genérica e abrupta, para vigorar dentro de poucos dias, não representa uma sociedade que concla- ma por regulamentação. Muito pelo contrário: a socieda- de é atropelada por decisões intempestivas. Entendemos que o momento é atípico e exige tratamentos em regime de exceção, mas existem questões operacionais a serem consideradas que podem ser complexas, dependendo da medida. Sob o ponto de vista financeiro, a ANS vinha acompanhando os números do setor, sabia que havia so- bras – como de fato o fechamento das operações contá- beis e financeiras de 2020 comprova. Agora, essa sobra de caixa é na média. Costumo dizer que a média é a cabeça no congelador, os pés no forno e a temperatura está ótima, mas o sujeito não está vivo. Então, na média as operadoras estavam tendo sobra de caixa, podiam su- portar naquele momento uma suspensão de reajuste. A questão é: todas as operadoras estavam vivendo essa rea- lidade? Não, não era para todas. Não houve uma regra que olhasse de forma mais individualizada. Não houve espaço para que se apresentasse um pleito de discussão. Claro que, quando a gente olha para uma operadora que está 100% nesse modelo fee for service e que tem 100%

da rede credenciada, de fato ela teve redução na despesa assistencial, na sinistralidade. Mas há operadoras que têm hospital próprio, que precisaram investir para ter novos leitos, contratar de última hora a peso de ouro profissio- nais, adquirir EPIs [equipamentos de proteção individual] também a peso de ouro por causa de um mercado inter- nacional que elevou os preços. Tudo isso custa. Ela teve que colocar esse dinheiro na frente e, muitas vezes, ficou com taxa de ocupação de 55% a 60%, ou seja, investiu em um recurso que, em boa parte do tempo não foi neces- sário utilizar. Isso custa e não tem quem pague. Então, você penaliza essas operadoras com uma suspensão de reajuste. Toda decisão unilateral, intempestiva, dificil- mente é inteligente.

E quanto a este cenário em 2021?

Estamos enfrentando a seguinte situação: o método de calcular reajuste dos planos individuais é um método retrospectivo, que olha só para o que já aconteceu; não olha para o hoje. Dessa forma, o dado que será olhado é o de sinistros de 2020 para comparar com o de 2019. Matematicamente falando, a necessidade de reajuste se- ria negativa. Mas, acompanhando tudo o que está aconte- cendo nesses meses de 2021 que já passamos, faz sentido olharmos para essa realidade retrospectiva do passado e dizer que o reajuste dos planos de saúde – que deve ser suficiente para arcar com a despesa residual daqui para a frente – tem que ser menor do que era antes? Para mim, não faz sentido nenhum. Outro aspecto é que a regra usada pela ANS para calcular o reajuste dos planos indi- viduais acaba mudando todo ano, não de forma explícita nem participativa por parte da sociedade, o que se torna difícil em termos de transparência.

O que poderia comentar sobre as propostas para o controle dos reajustes dos planos coletivos?

O fato de o reajuste dos planos individuais ser único, sem respeitar as particularidades de cada operadora, fez com que muitas delas se desinteressem por oferecer essa mo- dalidade. No começo da regulamentação, praticamente todas as operadoras tinham planos individuais. Hoje, não são nem 30%. Se trouxermos esse mesmo contexto para os planos coletivos, vai acontecer a mesma coisa. Esta- mos falando do setor privado. Não há mal nenhum em uma operadora investir em um negócio com o objetivo de lucro. Essa é a premissa na qual se baseia a socieda- de capitalista. Nesse contexto, não terá quem fique no mercado. Essa é a ameaça que paira no segmento caso venha a acontecer a determinação do reajuste pelo órgão regulatório. Controlado ele já é. Todo reajuste de plano coletivo precisa ser informado à ANS, que tem conheci- mento, tem o indicador por contrato de acordo com as bases ali acordadas. Esse acompanhamento a ANS já tem meios de fazer; ela colhe essas informações do segmento. Outro aspecto é que a Agência não tem braços também para determinar o reajuste de cada contrato. Existem 2 mil atuários hoje no Brasil que fazem isso e assumem essa responsabilidade técnica. Passar essa atividade ao ór- gão regulador é um excesso de gerenciamento que não cabe nos dias atuais.

O que precisa ser feito para gerar mais acesso aos planos individuais?

Vejo dois pontos cruciais. O primeiro é reabrir a discus- são de critérios de reajuste desses planos. O ideal é que ele fosse por operadora ou por agrupamentos de operadoras. Precisaria haver um critério que mantivesse a busca por eficiência econômica, mas, ao mesmo tempo, trouxesse um pouco mais de proporcionalidade até regional. Pode haver uma operadora que atua numa cidade específica onde o único hospital daquela localidade elevou muito as suas taxas e não aceitou negociação. A operadora é refém daquela operação comercial; precisa aceitar aquele rea- juste alto e não terá esse reconhecimento no reajuste do plano de saúde. É uma conta muito injusta para a opera- dora. Outra proposta é haver uma revisão técnica indivi- dualizada caso a operadora venha a estar em uma situação de desequilíbrio atuarial. Algumas operadoras veem isso como uma solução. Existe também um debate importante no mercado sobre se não faria mais sentido ter um plano

um pouco mais enxuto, porque o plano de saúde hoje vem com um rol mínimo que não tem nada de mínimo. É má- ximo, é tudo. Seria uma subsegmentação dos planos de saúde. Esse é um terceiro caminho possível.

Na perspectiva atuarial, como enxerga a formatação de novos produtos?

Hoje você tem um plano ambulatorial, que vai cobrir absolutamente tudo o que você precisar fora do hospi- tal. Tem o plano hospitalar, que cobre tudo o que você precisar em uma internação hospitalar. Existem, ainda, o obstétrico, que pode estar junto ao hospitalar ou não, e o odontológico, que tem o seu próprio rol mínimo. A pro- posta de subsegmentação seria a possibilidade de oferecer coberturas menores e exigiria mudança da lei. Não é algo que o órgão regulador teria competência para alterar. É um caminho que pode ser discutido, desde que haja ma- turidade. Antes, só quando você necessitava de algum determinado atendimento, descobria que seu plano não tinha. Não era uma relação de consumo clara, porque os usuários não entendiam amplamente os contratos. A definição do rol mínimo de cobertura único para todas as operadoras trouxe comparabilidade entre os produtos com relação à cobertura, que é a parte mais sensível e em que o consumidor tem o menor domínio. Acredito que essa tenha sido uma grande conquista social. Nesse debate, a minha recomendação seria para uma subseg- mentação pré-definida, com modelos e coberturas defi- nidos em lei. Não cada operadora definir o que vai ou não cobrir; esse modelo seria voltar para a década de 80, andar para trás.

Qual a sua visão quanto aos possíveis subsídios cruzados, em que os contratos com poucas vidas estariam subsidiando reajustes baixos para grandes contratos? Isso de fato acontece?

Não acontece. Os planos coletivos de pequeno porte para cada operadora têm um cálculo do percentual de reajus- te do conjunto de operadoras de pequeno porte. É um modelo bem interessante. Então, não se cruzam infor- mações de contratos de grande porte com contratos de pequeno porte na hora de calcular reajuste, sob hipótese nenhuma. É proibido pela regulamentação. Não aconte- ce isso na prática, não está previsto no arcabouço regula- tório. Quem interpretou uma ou outra colocação dessa forma o fez equivocadamente.

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